sábado, 19 de setembro de 2009

NÃO ALIMENTE OS URSOS ( sobre A Alma Encantadora das Ruas - Paulo Barreto - João do Rio)



                Você já ouviu falar de João do Rio? Trata-se de um negro, gordo e homossexual declarado que viveu no Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX. Refiro-me a João Paulo Alberto Coelho Barreto, ou simplesmente Paulo Barreto ou João do Rio. Com estes predicados, talvez você esteja imaginando um pobre homem negro humilhado por uma sociedade preconceituosa: a sociedade carioca do início do século passado. Na verdade, trata-se de um escritor e cronista altamente reconhecido pelos círculos cultos da alta sociedade carioca. Um verdadeiro fenômeno de popularidade e admiração. Tudo graças ao seu gênio e inteligência sagaz, refletido nas suas grandiosas crônicas publicadas em diversos jornais da época. Figura badalada e querida, ter João do Rio em sua festa socialite era sinônimo de status, cultura e bom relacionamento. Em 1910, aos 29 anos, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
                Bem, se você está se perguntando por que estou relembrando João do Rio, já vou lhe responder! Podemos dizer que todas as suas obras são surpreendentes e denunciadoras, mas quero citar “A Alma Encantadora das Ruas”, crônica escrita em 1908, na qual Paulo Barreto denuncia a mendicância profissional que assolava a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Abordou diversos aspectos que valem ser lidos, pois representam a mais clara realidade atual da Cidade Maravilhosa. Permitam-me, pois, reproduzir apenas algumas linhas das mais de cem páginas desta crônica:
                "Não há, de certo, exploração mais dolorosa que a das crianças. Os homens, as mulheres ainda pantomimam a miséria para lucro próprio. As crianças são lançadas no ofício torpe pelos pais, criaturas indignas, e crescem com o vício adaptando a curvilínea e acovardada alma da mendicidade malandra. Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três, garotos amarelos de um lustro de idade e moçoilas púberes sujeitas a todas as passividades. Essa criançada parece não pensar e nunca ter tido vergonha, amoldadas para o crime de amanhã, para a prostituição em grande escala. Há no Rio um número considerável de pobrezinhos sacrificados, petizes que andam a guiar senhoras falsamente cegas, punguistas sem proteção, paralíticos, amputados, escrofulosos, gatunos de sacola, apanhadores de ponta de cigarros, crias de famílias necessitadas, simples vagabundos à espera de complacências escabrosas, um mundo vário, o olhar de crime, o broto das árvores que obumbrar as galerias de detenção, todo um exército de desbriados e de bandidos, de prostitutas futuras, galopando pela cidade à cata do pão para os exploradores. Interrogados, mentem a princípio, negando; depois exageram as falcatruas e acabam a chorar, contam que são o sustento de uma súcia de criminosos que a polícia não persegue.”
"Há a exploração lenta, que ensina os pequenos a roubar e as meninas a se prostituirem; o caftismo disfarçado, que espanca, maltrata e extorque. É um vasto tremedal a que a retórica sentimental nada adianta, cujo mal a segurança pública não quer remediar."
                Esta crônica parece ter sido escrita hoje, tamanha semelhança aos nossos dias! Esta denúncia deixa claro o quanto somos coniventes com tais vícios. Ora, toda vez que damos esmolas nos sinais de trânsito estamos garantindo a perpetuação da certeza de que ali se constitui uma forma fácil e inesgotável de dinheiro. Basta pedir! Pior, estamos contribuindo com a certeza de que retirar seus filhos das escolas para esmolarem nos sinais é uma forma de multiplicar esta fonte de renda. E talvez seja, pois vadiagem não mais parece ser crime no Brasil . . .
                Engana-se quem pensa que no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, não existem albergues vazios, prontos a acolher os sem-tetos. Engana-se quem pensa que as escolas públicas não possuem vagas suficientes para acolher estas crianças, com merenda e tudo!
                Achamos graça ao ver nos desenhos animados americanos as placas de “não alimente os ursos”; ursos estes que têm plena alimentação garantida nos parques americanos, mas que por vez ou outra atacam turistas dentro dos seus veículos, simplesmente por estarem acostumados a receberem as migalhas oferecidas por um pai bobo na presença de seu filho.
                Também aqui “alimentamos os ursos” que, nos sinais, e ainda com tenra idade, não aceitam uma moeda de dez centavos; capazes mesmo de jogá-la na nossa cara!
- Qual é? Você já os acostumou com um real, porque dar dez centavos?
 Assim perpetuamos esta cultura e colaboramos para que cada dia mais as crianças, futuro de nossa pátria, sejam jogadas nesta lama moral.
                Para usar mais uma vez as palavras de João do Rio: “É um dos casos de formação de caráter, de inversão moral.”
                Agora podemos nos espantar com o fato desta crítica sobre mendicância profissional ter completando cem anos e nada ter mudado, mas daqui a mais cem anos, nossos netos certamente não vão se espantar se continuarmos alimentando os ursos!
 João Paulo Alberto Coelho Barreto,
ou simplesmente João do Rio

2 comentários:

  1. A história do João do Rio é incrível mas mais incrível ainda é saber que nada mudou.

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  2. Meus Deus! É chocante... Quando será que a nossa realidade social irá mudar? Parece que até hoje nada mudou.

    Felizmente, ainda podemos exaltar a você e ao João do Rio pela perfeita visão de passado e presente.

    Abraços, :-)

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