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Manuscrito analisado
Vida
simplícia
Marco Túlio Freire
Baptista
Resumo
Trata
a presente pesquisa da análise de um documento que revela as desventuras de uma
escrava que recorreu à Justiça para obter sua liberdade em 1831. Esta história
particular, de uma “Maria” desconhecida, analfabeta e escrava foragida,
descortinou amargas raízes das tradições sociais brasileiras, além de ter
trazido à tona práticas de vanguarda do Direito Brasileiro na primeira metade
do século XIX. Esta vanguarda do Direito antecipou a liberdade para negros
escravos muito tempo antes das leis abolicionistas, no entanto, podem revelar
efeitos colaterais que seguiram em sentido oposto à tendência mundial.
Palavras-chave:
abolicionismo, Direito antiescravagista, processos de liberdade, reescravização.
Abstract
This research analyzes a document that reveals the
misadventures of a slave who appeals to court to obtain her freedom in 1831.
This particular story of an unknown "Mary", illiterate and fugitive
slave reveals bitter roots of brazilian social traditions, as well brings up
Brazilian Law vanguard practices at the first half of the nineteenth century.
These legal practices anticipated freedom for black slaves long before the
abolitionist laws, however, can uncover side effects that followed in the
opposite direction to the global trend.
Keywords: abolitionism, anti-slavery law, freedom
processes, re-slavery.
Esta, como muitas outras
pesquisas, surgiu do acaso, de vir às mãos um conjunto de manuscritos antigos
que, de início, aparentavam ter pouca importância histórica. Com eles tomou-se
conhecimento da história pessoal de uma escrava, cuja vida e morte jamais
mudariam os rumos da história do Brasil. No entanto, a vida dessa escrava e os
percalços enfrentados na luta pela liberdade possibilitaram analisar tendências
que marcaram o período Imperial e influenciam ainda hoje a sociedade brasileira.
Da mesma forma, trouxe à tona contradições internas dos processos de liberdade e
do Sistema jurídico Brasileiro que normalmente são tidos como elementos deslegitimadores
do sistema escravista durante o século XIX.
O crescente acesso de
escravos negros aos tribunais não era uma via de mão única, pois, depois de
séculos de exploração havia sido criado um ambiente de “racismo e intolerância
étnico-cultural que desempenhava um papel importante na definição de quem devia
obedecer e quem devia mandar” e isso refletiu no direito à liberdade. O ganho
de direitos no mundo branco vinha acompanhado por “alianças sociais em geral
que redundavam no sacrifício de boa parte da sua autonomia e não raro de sua
dignidade” (REIS, 2003; 29).
“A
maioria dos escravos parece ter se acomodado bem ou mal à escravidão. Se não
fosse assim, a escravidão provavelmente teria sido destruída como instituição
muito tempo antes do que foi” (VIOTTI, 2010; 114). No entanto, esta acomodação
não foi passiva e, pelo menos até o início da segunda metade do século XIX, se
deveu a diversos mecanismos que, intencionalmente ou não, visavam a garantir a
existência do sistema.
O regime escravagista no
Brasil, como qualquer outro sempre esteve em contínua mutação, reagindo a cada
ataque externo. Inicialmente tomou os braços indígenas e, quando estes
começaram a lhe faltar, seja pelo pensamento ilustrado europeu, seja pela
pressão da Igreja, os braços negros vieram como melhor substituto. Finalmente,
quando estes também lhe começavam a serem estranhos, já no final do século
XVIII e início do XIX, principalmente depois do triste fim do sistema no Haiti,
uma saída legal, menos dolorosa e apaziguadora começava a se delinear. Eram os
tribunais de primeira instância que gotejavam liberdade na boca dos sedentos
negros sem, no entanto, deixar de emoldurá-los na figura do escravo.
Ao
negro trazido da África e reduzido à escravidão ou nascido em cativeiro na
colônia restavam poucas opções para uma vida livre: a alforria, ganha
graciosamente de seu dono ou comprada; a fuga para um quilombo, com uma vida de
sobressaltos e incertezas; a rebelião, com a quase certeza da derrota e morte;
e, finalmente, apelar à Justiça. Esta última, embora somente fundada em uma
reconhecida injustiça, ainda era a saída menos dolorosa para um Estado
escravocrata, já que se perdiam alguns braços, mas se mantinha o sistema inteiro.
Tratam os manuscritos em questão de
uma juntada de documentos para um processo de liberdade em 1831. Embora este
tipo de processo fosse mais comum na segunda metade do século XIX, não era uma
grande novidade, já que existem registros de processos de liberdade de escravos
a partir no fim do século XVIII (GRINBERG, 1994; 25). O referido processo deu
início por meio de uma petição, um rogo à autoridade judiciária para fazê-lo
ver a injustiça que sofrera a escrava suplicante.
A
petição
A
petição inicial do processo em análise, datada de 15 de setembro de 1831, dá as
primeiras pistas sobre a suplicante, Maria Simplícia. Ela era uma escrava
foragida e achou de fazer valer seu direito, entrando na Justiça contra seu antigo
senhor, a fim de que lhe fosse garantida a sua liberdade, a qual era promessa
da “senhora” de sua mãe. Era filha de Maria Banguela, escrava que fora de Maria
Joaquina, moradora do arraial do Senhor do Bonfim, freguesia de Congonhas do
Campo, termo de Vila de Queluz, portanto da província de Minas Gerais (PROCESSO,
1831; 1)[1].
Este
primeiro documento, a petição, não contém assinatura, mas pode-se supor que
tenha sido redigido pelo próprio curador da escrava (o qual ainda não havia sido
nomeado). Por ele verifica-se que Maria Simplícia fundamenta seu direito no
fato da falecida senhora de sua mãe, Maria Joaquina, tê-la criada como liberta
e com promessa de alforria. Ocorreu que Maria Joaquina morreu sem fazer
testamento e antes de conceder-lhe oficialmente a liberdade. Com sua morte, os irmãos
da finada tomaram todos os seus bens, inclusive os escravos. Um dos irmãos da
finada, Antônio Rodrigues da Silva, vendeu Maria Simplícia e sua filha para os
sertões de São José de Alfendes para que vivessem longe e não pudessem requerer
ou provar seu direito à liberdade. De posse dessa petição, o juiz de paz de
Queluz, capitão Antônio de Souza Moreira, mandou que se nomeasse Manoel
Francisco Antônio Nogueira como curador da suplicante, o que se fez mediante o
termo de juramento do curador, em 19 de setembro (PROCESSO, 1831; 2).
Da
descrição acima apreende-se parte do rito de um processo cível de liberdade na
primeira metade do século XIX. Assim, ele dava início por meio de uma petição
do interessado, podendo ser redigida por qualquer pessoa livre em nome do
escravo, a qual era encaminhada a um juiz de paz. De posse da petição, o juiz
devia nomear um curador e ordenar o seu depósito, ou seja, o escravo permanecia
sob a guarda de um curador como se fosse um objeto sob custódia (GRINBERG,
1994; 22).
Observando
o caso de outra escrava, Liberata,
cuja ação chegou à Corte de Apelações do Rio de Janeiro, pode-se verificar que
o redator da petição inicial pela escrava foi a mesma pessoa designada para ser
o curador e este foi também o advogado que a representou legalmente em primeira
instância (GRINBERG, 1994; 17). Não havendo qualquer impedimento para que fosse
a mesma pessoa, o redator do requerimento, o curador e o advogado, pode-se então
presumir que, por escassez de pessoas letradas, também seja este o caso de
Simplícia. Acresce que no termo de juramento, o nome de Manoel Francisco
Antônio Nogueira aparece precedido do vocativo “Licenciado”, o que indica a sua
autorização para a prática da atividade jurídica, mesmo sem formação
específica. E se assim foi, percebe-se que a pessoa que fazia as vezes de curador
e advogado era, de fato, um rábula[2] com instrução muito
limitada, a julgar pela péssima qualidade ortográfica da petição, muito
destoante mesmo se comparada à redação dos documentos seguintes, feitos pelo
escrivão, profissão que não demandava uma formação superior.
Hoje esta situação pode
ser tomada com certa surpresa e parecer uma exceção, visto que a libertação de
um escravo judicialmente em pleno sistema escravagista pode parecer uma tarefa
de extrema dificuldade e só possível de ser realizada por grandes advogados. No
entanto, ao tomar-se por este e outros casos, tal defesa, até a primeira metade
do século XIX, estava nas mãos, em geral, não dos grandes nomes, mas nas mãos
dos desconhecidos cidadãos que se propunham a defender os escravos injuriados
em seus direitos, assim como se encontravam nas mãos da “primeira instância” do
arcabouço jurídico brasileiro, dos juízes de paz locais. Quanto a isto, a
própria existência deste tipo de processo desde o fim do século XVIII, quando
nem existiam cursos de Leis no Brasil, já demonstra a ação de “práticos em
leis”, rábulas, pois que os poucos filhos da terra que puderam estudar em
Coimbra provavelmente não voltavam para realizar defesas de escravos que não
podiam pagar por tais serviços. Muitos desses rábulas, ou aprovisionados, mal
eram alfabetizados e os formados em Direito eram, via de regra, apenas os
juízes de fora, nomeados pela Corte. O exercício da atividade sem formação
específica já era previsto desde as Ordenações Filipinas e, após a
Independência, a lei de 20 de outubro de 1823 mandou que estas Ordenações
vigorassem no Brasil. Assim a licença, ou provimento, era autorizada pelo
Desembargador do Paço e, depois de 1828, pelo presidente da Relação[3] (PAULO FILHO, 2007). Em
1828 iniciaram os primeiros cursos de direito no Brasil, criados no ano
anterior nas cidades de Olinda e São Paulo. No entanto, a demanda estava muito
longe de ser atendida e, ainda, se passariam muitos anos para que esta situação
se modificasse, principalmente nos interiores das províncias (CARVALHO, 2008;
74).
Quanto a este assunto,
Filippe Patroni, juiz de Praia Grande (Niterói), que mantinha um escritório
particular no centro da cidade do Rio de Janeiro, anunciou em 1837 a criação de
uma escola particular para ensino de leis que poderia servir a diversas profissões,
visto que não havia disponibilidade de faculdades de leis para atender às
necessidades (ANNUNCIOS, 1837; 3).
Voltando ao processo em
análise, o documento seguinte é o termo de juramento do curador, redigido pelo
escrivão, Luiz Domingues de Pereira, o qual informa que Manoel Francisco
Antônio Nogueira foi proposto pela própria Maria Simplícia para ser seu curador
e este jurou sobre os Santos Evangelhos, na forma da lei, tratar da justiça da
constituinte (PROCESSO, 1831; 2). O fato da escrava propor um curador, por si
só, já demonstra uma dificuldade imposta pelo sistema, ou seja, a escrava
deveria conhecer pessoa livre para pleitear qualquer ação judicial. Mais
especificamente, este conhecimento deveria ser de confiança, pois um outro
simplesmente poderia denunciar a escrava fujona ao seu senhor.
A necessidade de um
curador se dava pelo fato do escravo não ter capacidade civil (MALHEIRO, v.1,
1944; § 87, 99). Percebe-se, com isso, que o primeiro passo para o escravo
fazer uso do Direito era se reconhecer incapaz, portanto em uma situação
inferior a todos o restante da população. Acresce que a injustiça em pauta
estava no descumprimento, por parte dos parentes, da promessa de sua senhora em
dar-lhe a liberdade. Por isso, a injustiça que havia de ser reconhecida não era
a escravidão, mas a contrariedade da vontade de um senhor, embora este já
tivesse falecido. Portanto, a liberdade que se reivindicava seria tão somente a
defesa dessa vontade. Daí não ser estranho o fato de não se encontrar leis que
garantissem os direitos dos escravos, pois as leis eram feitas para garantir os
direitos da população livre. Quando se referiam aos escravos, normalmente eram
para imputar-lhes penalidades por terem, de alguma forma, ofendido seus
senhores.
Sendo certo a ausência de
leis protetoras para os escravos na primeira metade do século XIX, havia de ter
argumentos de defesa convincentes, mesmo que encontrados em uma proto jurisprudência.
Argumentos
legais
Talvez hoje, passados
quase duzentos anos, soe estranho um escravo recorrer ao Estado, que garantia o
regime de escravidão, pedindo sua liberdade negada pelo seu senhor. No entanto,
o que estava em jogo não eram as regras de um regime econômico, mas princípios
de justiça, justiça branca! Tais princípios, como reivindicados, não se
encontravam nas leis escritas do Direito Português ou Brasileiro, mas vinham
sendo incorporados principalmente por outros meios, tais como a religião e o pensamento
iluminista, os quais se difundiam dos cidadãos para o Estado e não no sentido
contrário.
Até
este ponto o leitor pode estar se perguntando como estavam as ações dos grandes
abolicionistas do Brasil, dos políticos e dos advogados? Bem, para citar alguns
nomes conhecidos: Joaquim Nabuco, ainda não nascido, só mergulharia na
política, defendendo o Abolicionismo, em 1879 (NABUCO, 2004; 143). E o grande
advogado negro e abolicionista Luiz Gama, responsável por libertar
judicialmente mais de 1000 escravos, recém-nascido, só se tornaria reconhecido
como grande abolicionista daí a cerca de trinta anos! Outros nomes viriam no
futuro, mas em 1831 não haviam grandes pilares nessa área.
Então, se não havia
grandes nomes por trás dos processos de liberdade, talvez as leis positivas já
houvessem avançado o suficiente para dar o aporte necessário. Mas isso não era
uma verdade! Revirando a legislação brasileira após a Independência, nada
relevante se encontra em termos de direitos para os escravos negros. Havia na
herança de Portugal fortes movimentos no sentido abolicionista. O Alvará de 19
de setembro de 1761 declarou livres todos os negros levados a Portugal após
certos prazos. Pouco tempo depois, o Alvará de 16 de janeiro de 1773 abolia totalmente
a escravidão negra em Portugal. Estas medidas abrangiam também as províncias
europeias, ilha da Madeira e Açores (MALHEIRO, v.2, 1944; 36-37). No entanto,
para as demais colônias havia uma ideia geral de que a extinção da escravidão
negra arrasaria com suas economias. Segundo o Marquês de Sá da Bandeira, de
1759 a 1803, haviam embarcado apenas dos portos de Luanda e Benguela para o
Brasil 642.000 escravos, com uma média anual de 14.000 a 15.000 e, ainda, o
imposto de importação correspondia a 85% da arrecadação de Angola (JORNAL DO
COMMERCIO, 1880; 12). Se por um lado a classe dominante via a necessidade de
manutenção da escravidão nas colônias portuguesas e, posteriormente, no Brasil
Independente, para a parcela menos privilegiada a notícia de tal alvará
certamente provocou agito nos ânimos aprisionados dos negros escravizados. Tais
ideais de liberdade expandiam-se rapidamente pelo Novo Mundo e o Brasil não era
imune a eles. No entanto, quanto a subjugação de povos, a colônia brasileira
enfrentava outra questão mais premente para a economia e para a solução de
conflitos sociais, a questão do índio.
Ainda no último quartel
do século XVIII, o iluminismo pombalino progrediu no sentido de amenizar o
cativeiro indígena, embora a exploração ainda fosse intensa, sendo extinto
oficialmente, só na Regência de D. João, pela Carta Régia de 12 de maio de 1798.
Essa Carta, além de extinguir a política de Diretório, igualava os índios aos
demais servos do Reino (MALHEIRO, v. 1, 1944; 295-297).
Esses avanços vinham com apoio e ingerência da Igreja Católica, mas
encerravam uma forte contradição filosófico-religiosa, visto que aparentemente
se libertava um povo e se intensificava o cativeiro de outro, os negros.
Portanto, a questão da abolição da escravatura africana, embora não fosse
contemplada nas leis positivas brasileiras, nem coloniais, nem após a
Independência, figurava em um imaginário filosófico e religioso, infiltrando
vagarosamente nas discussões políticas e em uma proto jurisprudência, ou regras
de costume. Na prática, muitas defesas se baseavam na compaixão que
religiosamente se poderia sentir de um escravo e apontavam para um ímpeto de vontade
de libertação de um antigo senhor.
Se a lei não protegia os
escravos, as brechas ou falhas da lei o permitia. Exemplo disso são os maus
tratos, uma antiga preocupação da Coroa e da Igreja. Em 1698 o rei D. Pedro II,
o Pacífico, dirigiu carta ao Capitão Geral do Estado do Brasil, D. João de
Lancastro, determinando que este apurasse e coibisse medidas de castigos aos
escravos negros julgadas de extrema crueldade, qual seja prender os membros do
escravo por argolas de ferro para imobilizá-lo durante a aplicação do castigo
de chibatada (BENCI, 1977;156).
A preocupação com o
excesso na punição do escravo aparece claramente desde muito cedo entre os
religiosos e a própria Igreja. Em 1705 foi publicado em Roma, sob chancela do
Vaticano, o livro Economia Cristã dos
senhores no governo dos escravos, escrito pelo missionário jesuíta na
Bahia, Jorge Benci, cuja intenção era compilar um manual de bem tratar os
escravos pelos senhores no Brasil. Nesta obra uma boa parte é dedicada aos
castigos para que não fossem extremos e cruéis (BENCI, 1977).
No século XIX, os
castigos já tinham uma restrição legal. Com base no Código Criminal, era permitido
o castigo moderados aos escravos, “desde que não fossem contrários às leis em
vigor”. Dessa forma, em castigos “imoderados” havia excesso que a lei punia como,
por exemplo, queimar o escravo, feri-lo com punhal, precipitá-lo no mar, ou
ofendê-lo de modo semelhante (MALHEIRO, v. 1, 1944; 23) (Cf. BRASIL, 1876,
parte 1, título 1, cap, 2, Art. 6º; 145). Neste prisma, a libertação de um
escravo poderia refletir uma punição a um senhor violento, mas soava algo como
piedade, uma piedade religiosa.
A religiosidade da
colônia brasileira de fins do século XVIII e início do século XIX foi marcada
pela força de um clero liberal, que havia rompido com o Episcopado e se
encontrava muito mais perto do povo, ou seja, dos pobres, mesmo que fossem
índios ou escravos negros (AZZI, 1983; 13-14). Este clero, muitas vezes atuava
como rábulas na defesa de escravos e pessoas muito pobres, pois dessa classe
mais baixa eram os únicos com alguma instrução. Embora não fossem versados, de
fato, em leis, tinham nos seus estudos pessoais e na própria Bíblia algumas
formas convincentes de defesa. Veja-se, por exemplo, que o Pentateuco proíbe e estabelece
penas para quem comete violência física contra escravos (Êx. 21: 20, 26, 27).
Se o Cristianismo foi em
algum momento fator justificador da escravidão, visto que na antiguidade
expressa no Velho Testamento, não a condenava nem a proibia, já no século XIX,
a consciência cristã contradizia o sofisma, pois que a escravidão era vista
como uma instituição dos Direitos das Gentes, puramente humano, abusivo e
condenado pelo Criador (MALHEIRO, v.2, 1944; 79-84). Assim, a defesa do escravo
injustiçado pautava-se mais no bom senso cristão que no ordenamento jurídico positivo.
Da mesma forma, a vanguarda do Direito Brasileiro nestas questões inclinava-se
para este senso cristão, firmando-se uma jurisprudência. Por isso, os grandes
conhecimentos jurídicos não eram tão necessários para realizar tais defesas.
Mais valia, talvez, uma boa condução e sensibilização por parte de um rábula
perspicaz.
Destaca-se que a petição
inicial de Simplícia foi encerrada rogando-se, em nome de Jesus Cristo, poder
mostra a sua justiça perante o juiz: “Pede a V. S. p.or Jezus
Christo se degine atender asup.e apoder mostrar
comtistimunhas açua justiça perante V. S. // (Sic.)” (PROCESSO, 1831; 2). Nesse aspecto,
o escravo ser batizado seria o primeiro critério para acessar as leis, pois que
africanos não-cristãos, estariam por demais fora do contexto para poderem
pleitear qualquer direito. Ocorre que a pia batismal também era uma forma de se
adquirir a liberdade.
O
batismo
Na
assentada foi deferida pelo juiz a declaração da testemunha Manuel Pinto
Pereira, homem branco, natural da freguesia Santa Maria dos Buriz, comarca da
Terra da Feira, Bispado do Porto, viúvo, de sessenta e quatro anos de idade, e
morador no Morro queimado, da aplicação do Rio do Peixe do termo de Queluz, o
qual, após juramento, declarou que era padrinho da justificante e que a havia
batizado na capela de Nossa Senhora da Glória do Passa Tempo. Declarou, também,
que quando ia com a justificante, Maria Simplícia, para batizar perguntou a sua
senhora, Maria Joaquina, como queria que a batizasse, se como escrava ou como
liberta, e que esta respondeu que queria como forra, pois se tratava de sua
sobrinha, filha de seu irmão, Antônio da Silva, e que assim (liberta) foi
criada
tanto no Arraial do Passatempo, como no do Rio do
Peixe de Nossa Senhora das Necessidades, assim como longos annos que habitou
nesta appelaçaõ do Bom Fim adita finada Maria Joaquina, e sempre foi liberta, e
tratada como tal a justificante Maria Simplicia, o que He assas publico (PROCESSO,
1831; 6).
Da
segunda testemunha consta que, João Antônio de Barcellos, homem branco, solteiro,
natural deste Arraial de Bonfim, freguesia de Congonhas, termo de Queluz, de
idade de vinte e quatro anos e vivia de seu negócio (?), declarou ser compadre
da justificante e era vizinho da falecida Maria Joaquina, quem, por muitas
vezes, lhe dissera que ela, Maria Simplícia, era liberta e que era sua sobrinha
(de Maria Joaquina), pois era filha do irmão dela, Antônio da Silva (PROCESSO,
1831; 7).
Uma
terceira e última testemunha fora apresentada, Joaquim José de Souza, homem
pardo, natural de Santa Luzia do Rio Manso, termo da Fidelissima Villa de
Sabará, e morador na aplicação do Bonfim, viúvo, de idade setenta anos e vivia
de cultivar a terra. Este declarou saber que Maria Simplícia era liberta e que
intencionava casar seu filho, Joaquim, pardo, com a justificante, mas que Maria
Joaquina não consentiu, pois eles eram cativos e Maria Simplícia era liberta,
filha de seu irmão (PROCESSO, 1831; 8).
Desses
depoimentos que visam demonstrar que Simplícia era criada como liberta e
sobrinha de Maria Joaquina, uma questão surge gritante, o abuso sexual. Se na
atualidade emergem discussões sobre a cultura do estupro, a origem do problema
tem raízes muito mais profundas e distantes na nossa história. A cultura da
dominação de uma etnia sobre outra sempre trouxe, entre seus traços mais
marcantes, a exploração sexual. Exploração forçada, seja fisicamente, seja pela
necessária docilidade da escrava como fuga às piores consequência dos maus
tratos. A situação vivida por Maria Banguela, mãe de Simplícia, era recorrente
no contexto escravocrata brasileiro e, muito facilmente, a culpa era atribuída
à lascividade da própria vítima (Cf. FREIRE, 2013, cap. 4). Essa inversão de
valores nem sempre passava despercebida à Justiça, pois se, de alguma forma,
era vista como prática corriqueira e fácil de se fechar os olhos e ignorar,
diante da moral, principalmente trazida à luz da Justiça, tal atitude era
condenada como abuso das leis de costume.
No
caso em estudo, o estupro gerando uma criança assumia uma significância de
maior relevo por ter gerado uma filha de “senhor”. É verdade que o ventre
definia o regime servil, filho de escrava era escravo, não importando muito se
o pai era livre ou liberto, contudo havia uma exceção, conforme narrou o
jurista Perdigão Malheiro em 1866:
Conseguintemente devemos assentar como regra a seguir entre nós – que,
se a mãe é livre em qualquer tempo, desde a concepção até o parto, o filho
nasce livre e ingênuo, ainda que ela em qualquer dessas épocas seja ou fôsse
escrava. Esta doutrina e de Direito subsidiário, de boa razão, e perfeitamente
de acôrdo com o espírito e disposições gerais de nosso Direito em semelhante
matéria; e aceita pelos nossos Praxistas.
§25. Caso há, porém, em que, não
obstante escrava a mãe durante todo este tempo, e em que portanto devera o
filho nascer escravo, êle é todavia livre e ingênuo. – Tal é v.g. o de ser seu
pai o próprio senhor de tal escravo. A Ord. L. 4°. Tit. 92 pr. Assim se
deve entender nas palavras finais – se por morte de seu pai ficar fôrro - ; porque repugna o Direito Natural que alguém
possua com seu cativo seu próprio filho, nem as nossas leis isto permite
desde que negam o direito de vendê-los, e implicitamente o domínio, nem já o
permitia o Direito Romano, desde Diocleciano, proibindo vender os filhos e
negando propriedade sobre êles. Esta exceção procede evidentemente também em
tôda a ordem dos descendentes. Assim como se deve ampliar a outros casos, como
sejam descendentes por afinidade, ascendentes consanguíneos ou afins,
colaterais conhecidamente tais sobretudo próximos (irmãos v. g.), cônjuge (MALHEIRO,
v. 1, 1944, §§ 24-25; 51-52, grifo do autor).
Apesar do evidente estupro,
outra questão definiria o destino daquele processo, era o batismo. A Igreja
Católica permeava todos os estratos da sociedade colonial e imperial e a
entrada do escravo no grêmio da Igreja era considerado uma questão de direito. O
negro sem batismo era considerado um ser inferior (FREYRE, 2013; 436). Assim, o
primeiro passo na aquisição de direito era o batismo. Para o caso específico de
Simplícia este sacramento vinha revestido de direitos especiais, a alforria na
pia batismal. A questão deve ser analisada pelo prisma do reconhecimento corrente
do ato voluntário de restituição da liberdade pelo senhor do escravo. Este ato
voluntário poderia ser cumprido com as formalidades legais estando vivo, carta
de alforria, ou, após a sua morte, por intermédio de testamento. Contudo,
qualquer nulidade no processo legal não afetava nem prejudicava a questão da
liberdade, desde que houvesse qualquer outra fundamentação; mesmo a falta de
uma escritura pública, qualquer outra prova era admissível; testemunha, por
exemplo. Nestas condições, as formas mais correntes de liberdade eram carta de
alforria, assinada pelo senhor ou por outra pessoa a seu pedido, sem
necessidade de haver uma testemunha; o testamento, formal ou não; e,
finalmente, a pia batismal (MALHEIRO, v. 1, 1944, §§ 83-84; 94-96). Esta última
forma, acaba denunciando a paternidade da criança, embora sem formalidade
legal.
Acresce
que havia um consenso de que nos casos de dúvida o juiz deveria decidir a favor
da liberdade. Para Portugal e Brasil este costume teria surgido a partir do
Alvará de 16 de janeiro de 1773, Fr. 20 e 122, e permanece ainda hoje como
marca significante do Direito Ocidental: Quoties dubia interpretatio
liberatis est, secundum libertatem respondendum erit (e ) Liberatas
omnibus rebus favorabilior est (NEQUETE, 1988; 168).
Com
esta prática frouxa de regramentos, as declarações tomadas das testemunhas sob
juramento foram as garantias necessárias para a concretização do ato judicial
em favor da suplicante, garantindo-lhe a liberdade.
Se
o reconhecimento da injustiça da reescravização não parece tarefa impossível
naquele momento, manter-se livre talvez fosse algo mais complicado! Interessante
notar que o notável rábula negro, Luiz Gama, filho de uma negra forra e pai
fidalgo de origem portuguesa, fora ele mesmo nascido livre e, posteriormente
com dez anos, vendido como escravo por seu próprio pai. Também ele conseguira provar,
em tribunal, a sua liberdade, pois fora escravizado ilegalmente (Cf CÂMARA,
2010). Em 1859, quando publicou seu livro de poesias, Primeiras Trovas
Burlescas, Luiz Gama talvez já tivesse conhecimento de muitos casos iguais
ao seu, por isso na poesia “No cemitério de S. Benedito” tenha feito
questão de citar a infâmia de nascer livre ser escravizado:
Em lúgubre recinto escuro e frio,
Onde reina o silêncio aos mortos dado,
Entre quatro paredes descoradas,
Que o caprichoso luxo não adorna,
Jaz na terra coberto humano corpo,
Que escravo sucumbiu, livre nascido! (GAMA, 2000, 153-154)
De volta ao
caso de Maria Simplícia, mesmo após ter reconquistado a sua liberdade, ainda
seria assombrada pelo fantasma da escravidão.
A
volta ao cativeiro
Maria
Simplícia, tendo obtido a sua liberdade na Justiça, pode viver alguns anos em
paz com suas filhas. Alguns anos depois, porém, teve novamente sua existência
ameaçada pelo cativeiro. O jornal O bom
senso de São João del Rei publicou, em sua edição de nove de junho de 1856,
uma denúncia sob o título de “Facto
horrível, e escandaloso acontecido na villa de Três-Pontas”, no qual dava
conta de que na referida vila havia sido arrematada uma escrava de nome
Felicíssima e sua filha. Informa ainda a denúncia que
Felicíssima
é filha de Maria Simplícia, e Maria Simplicia é filha de uma escrava, que foi
de Maria Joaquina; que tendo pleno conhecimento que Maria Simplicia era filha
natural de seu irmão, razão porque a mandou baptizar por forra no districto da
villa de Bom-fim, aonde morava, e aonde foi esta mulher creada como liberta e
por tal por todos reconhecida, em cujo estado teve differentes filhos
baptizados por pessoas livres, fallecendo a senhora, que foi da mai de Maria
Simplicia intestada, seos parentes colateraes sem que se habilitassem pelos
meios competentes, passarão a vender esta mulher livre fora do domicilio; e
comparecendo o pretenço senhor, e aprehendendo-a e a seos filhos, forão estes,
e a mai manutenidos na posse de suas liberdades pela Justiça da villa de
Queluz, a cujo municipio pertencera Bom-fim; (FACTO, 1856; 6)
Por estas informações não
pode haver dúvidas de se tratar da mesma Simplícia. A denúncia continuava
narrando que Maria Simplícia vivera dezoito anos como livre, numa determinada
noite teve sua casa cercada por um certo Leodoro que a amarrou, juntamente com
as filhas e netas, conduzindo-as ocultamente para fora do município. Simplícia
foi novamente vendida como escrava na vila de Resende. Posteriormente, a
autoridade municipal, ao ser informada dos fatos anteriormente ocorridos, deu-lhe
um curador que a livrou de mais este injusto cativeiro. Como havia sido libertada anteriormente em
1831, Simplícia sofrera novo cativeiro ilegal por volta de 1849 (18 anos viveu
livremente), portanto teria sido escrava novamente por cerca de mais sete anos
ou um pouco menos, já que o jornal informa que suas filhas e netas ainda se
encontravam cativas em 1856. Pode, também, ter conseguido sua liberdade a mais
tempo e passara estes anos a procurar o paradeiro das filhas e netas já que
foram vendidas em cidades diferentes, não se sabe ao certo. A denúncia, que era
datada de 20 de maio de 1856, tratava de uma de suas filhas e duas netas, que também
deveriam ser livres, mas foram vendidas na vila de Três Pontas. Acrescentando
uma dose de complicação ao caso, o juiz da arrematação, mesmo cientificado dos
fatos, concorreu para que a venda não fosse embargada, portanto, mais uma vez
ocorria a redução de pessoas livres à escravidão (FACTO, 1856; 6).
Rastreando-se as notícias
seguintes, verificou-se que além de Felicíssima, outra filha de Maria
Simplícia, também de nome Maria, havia sido vendida em outro município, Passos.
Uma representação assinada por 27 cidadãos de Bonfim e enviada para o governo
da província de Minas Gerais, comprovou que Maria e Felicíssima eram livres, bem
como as filhas de Felicíssima. Assim, o próprio presidente da província de
Minas Gerais, Sr. Dr. Herculano Ferreira Penna, em ofício encaminhado ao Chefe
de Polícia da província, determinou que “fosse restituido a liberdade as
pacientes, quando à ellas tenhão direito, e punindo com o rigor das leis os que
a reduzirão a escravidão” (EXTRACTO, 1856; 6).
Interessante observar a
luta pessoal de Maria Simplícia que, depois de conseguir judicialmente a sua
segunda libertação, provavelmente retornou à Bomfim e conseguiu articular o
envio de uma representação ao governo da província, sem a qual suas filhas e
netas permaneceriam escravas. Se a vanguarda do direito vinha no sentido de
apaziguar e postergar a escravidão, também não se pode negar que foi
instrumento de resistência para alguns negros escravos que bem se adaptaram a
tal recurso.
Legalmente esta nova
situação se deparou com condições que também puderam ser resolvidas sumariamente,
no entanto envolvendo o governador da província e o chefe de polícia. Como
facilmente puderam comprovar que todas eram livres e foram reduzidas à
escravidão ilegalmente, foram postas em liberdade. Neste caso havia um claro
amparo nas leis positivas; as Ordenações Filipinas previam semelhante caso como
cárcere privado (ALMEIDA, 1870; 1243), além disso, o artigo 179 do Código
Criminal do Império, de 1830, determinava pena de três a nove anos a quem
reduzisse pessoa livre à escravidão (BRASIL, 1876; 177). Este último amparo
legal (Código Criminal) sugere que a grande maioria dos processos de manutenção
de liberdade, onde o escravo era beneficiado, não chegavam as instâncias
superiores, como tribunal de Relação (2ᵃ instância) ou Casa de Suplicação (3ᵃ
instância), apesar de isso ter acontecido diversas vezes. Pelo contrário, faz
crer que, nos casos como de Simplícia, suas filhas e netas, os processos deviam
ser resolvidos quase sempre na primeira instância, pois que dificilmente alguém
que, ilegalmente, reduziu um negro à escravidão, correria o risco de, num Tribunal
de Relação, ser condenado em instância superior. Portanto, perdendo em primeira
instância, deveria ser mais comum a desistência do senhor.
Levando-se em
consideração as quatro gerações, de Maria Bangela às suas bisnetas, cobre-se
toda a primeira metade do século XIX, no qual a vanguarda do Direito Brasileiro
caracterizou-se por possibilitar a solução dos processos de liberdade na esfera
da primeira instância, baseado em regramentos de uma jurisprudência difusa e
muitas vezes abstrata ou arbitrária, com fundamentação no pensamento religioso
cristão e ideias liberais. No entanto, esta permeabilidade da Justiça, chegando
aos escravos, não era de forma gratuita! O ganho de direitos pela classe
explorada, embora pareça de pouca monta se comparado com o total da população
negra, produziu o efeito de contentá-los e esfriar revoltas. Portanto há um
sentido, aparentemente contraditório, de autodefesa do próprio sistema, já que
o movimento no sentido de libertação judicial acarreta uma possibilidade de
adiamento da Abolição. Parece comprovar este fato o baixo número de revoltas
negras, mesmo em momentos críticos da história do Brasil. Mas seriam tão poucas
assim as revoltas negras no Brasil? Ao estudar a mais importante revolta negra,
ocorrida na Bahia em 1835, o Levante dos Malês, João José Reis (2003) destaca
uma verdadeira tradição de revoltas escravas na Bahia, tanto ainda do período
Colonial, de 1807 a 1821, quanto no período Imperial, de 1822 a 1835. Estas
revoltas, por vezes foram esmagadas com força desproporcional, no entanto, por
outras vezes, foram tratadas de forma surpreendentemente complacente, ou pelo
menos compreensivamente, numa aparente política de apaziguamento. É o caso da
rebelião ou fuga coletiva de 1809, que punha em risco o sistema escravagista na
Bahia, mas, no entanto, a devassa que se arrastou pelo ano seguintes, já no
governo do Conde dos Arcos, não achou crime de sedição ou levante, apenas um
“imprudente desejo de recuperar o estado natural (de liberdade) ” (REIS, 2009;
80). Uma política de apaziguamento pode ser admitida quando existe o medo de
que o ódio e ressentimento contido nas almas negras fujam do controle branco.
Neste caso, melhor fazer concessões do que perder tudo, inclusive a vida, numa
revolta generalizada. Neste sentido o Brasil do início do século XIX possuía um
exemplo tenebroso e muito perto, o Haiti.
Reis (2006; 84-85) cita evidências de que esta revolução era considerada
um símbolo da resistência pelos negros e aponta a publicação de um documento de
1805, por Luiz Mott, o qual revela que soldados negros no Rio de Janeiro usavam
medalhões com a efígie de Dessalines, apenas um ano após aquele ter declarado a
Independência de Saint-Domingue, depois rebatizado de Haiti. Assim, o fantasma
haitiano perseguiria os grandes e pequenos proprietários por todo o século XIX.
Mesmo assim, a maior
revolta escrava no Brasil, a revolta dos Malês durou apenas alguns dias. Além
disso tratavam-se de negros predominantemente islamizados, de língua
estrangeira (árabe), mais fortemente segregados da sociedade livre; localiza-os
num quadro bastante atípico no contexto nacional e, portanto, sem o menor
acesso às possibilidades legais do Direito Brasileiro. Assim, manter-se um
“padrão” de tolerância com os escravos negros, gotejando-lhes liberdade, também
significava a manutenção do próprio sistema.
Por
outro lado, na segunda metade do século XIX houve um crescimento do movimento
abolicionista. E foi justamente este crescimento que expôs mais claramente o
sentido de autodefesa do sistema escravagista brasileiro, permitindo leis
abolicionistas que, em grande parte, se apresentavam como paliativos para o
inevitável, a Abolição. Portanto, as leis abolicionistas da segunda metade do
século XIX foram o espelho ampliado dos avanços da suposta vanguarda do Direito
Brasileiro na primeira metade do século.
Leis
abolicionistas
A
medida que as jurisprudências se firmaram em torno de proteger e libertar o
escravo negro vítima de injustiça, o Direito Positivo se firmou no sentido da
Abolição. Contudo, uma Abolição para depois, postergada! Uma Abolição adiada
que acalmava os exaltados abolicionistas e conformavam os escravos negros,
forçando-os a se reconhecerem dentro desse sistema. Era ainda a legitimação
pelo uso do direito, numa esfera mais ampla.
Em 16 de junho de 1831 os deputados
Antônio Ferreira França e Ernesto Ferreira França apresentaram na Câmara dos
Deputados um projeto de lei que tinha o seguinte teor:
A Assembléia Geral
Legislativa decreta:
Art. 1° A
escravidão acabará no Brasil.
Art. 2° Os
escravos da Nação são livres já.
Art. 3° Os mais
como se segue: no primeiro ano da data desta Lei os senhores libertaram o
cincoenta avos dos respectivos escravos; no segundo ano, os quarenta e nove; e
no terceiro ano o quarenta e oito avos; e assim por diante, desprezadas as frações
(BRASIL, 2012;67).
Com este projeto libertava-se
imediatamente todos os escravos pertencentes ao Estado e proporcionar-se-ia a
extinção completa da escravidão no Brasil num prazo de 50 anos, até 1881. Apesar
de ser uma medida que atendia as duas partes interessadas, ou seja, dos
escravos e dos proprietários, que teriam um período bastante dilatado para
trocar sua mão de obra por assalariada, o projeto nem foi posto em votação. A
proposta que venceria e se tornaria a lei de 7 de novembro de 1831, do Gabinete
Feijó, libertava todos os escravos vindos do exterior a partir daquela data,
mantendo-se algumas exceções (BRASIL, 2012; 69). Esta medida parece ter
cumprido melhor a “política de apaziguamento”, pois demonstrava uma “vontade”
legislativa em abolir a escravidão, mas, na prática, nada modificava, já que o
tráfico ilegal continuou forte no Brasil e os negros escravos permaneciam
cativos em todo o país.
De
fato, a proibição teria trazido o medo de extinção de braços negros e incentivou
o incremento do tráfico. De 1831 a 1852 estimou-se que cerca de meio milhão de
negros escravos foram introduzidos ilegalmente no Brasil. A julgar-se pela
cumplicidade, desde o Parlamento até os magistrados locais, com o sistema de
cativeiro este número poderia facilmente ser estimado como uma cifra mais real equivalente
ao dobro, cerca de um milhão! (NEQUETE, 1988; 64-65)
Sofrendo grandes pressões da
Inglaterra, apenas em 1850 com Lei Eusébio de Queiroz (lei de 04 de setembro de
1850) se estabeleciam medidas repressivas contra a entrada de escravos negros
no Brasil. Assim, a proibição de 1831 havia sido claramente postergada por
vinte anos, só sendo mais efetiva quando os ânimos voltaram a esquentar, enfraquecendo
o aumento do contingente negro que em breve não mais aceitariam a escravidão. Portanto,
mais uma medida da política de apaziguamento. A Lei do Ventre-livre, de 28 de
setembro de 1871, cujo projeto surgiu em momento de recrudescimento das
relações dos liberais exaltados com o Governo e quando não mais se falava em
emancipação gradual e sim Abolição, pois muitos se viam influenciados pela
participação negra na Guerra do Paraguai. Como não considerar cidadão aquele
que lutou pela pátria? A nova lei era mais uma válvula de escape para os
conservadores escravocratas ecoados. O projeto desta lei, proposto pelo
Gabinete Rio Branco, era defendido por este como meio mais razoável diante da inevitabilidade
da Abolição, já que concederia mais tempo para os proprietários migrarem sua
mão-de-obra para assalariada. Cumpre lembrar que um dispositivo na lei dava o
direito de o senhor permanecer com a criança, filha de escrava, trabalhando sem
receber qualquer remuneração até os vinte e um anos de idade[4]. Em outras palavras,
escravo com o rótulo de livre (VIOTTTI, 2010; 54). Era a política de adiamento
feita abertamente. De fato, já entrando no último quartel do século XIX, quando
as mães negras reconheciam no Direito Positivo Brasileiro, a liberdade de seus
filhos, filhos de escravas, mais uma vez se reconheciam como parte e
legitimavam este sistema moribundo, pois se o filho é livre a mãe permanece
escrava. Não há necessidade de se prolongar nesta legislação antiescravagista,
que dava a conta-gotas o direito de liberdade. Apenas cita-se mais a absurda
Lei dos Sexagenários de 1885 (Saraiva-Cotegipe) que, em mais uma tentativa de
postergar o inevitável, acabou livrando os senhores do peso de um escravo de
sessenta anos ou mais que, depois de muitos anos de exploração e, possivelmente
inutilizado para o trabalho, permitia que seu senhor apenas indicasse o caminho
da rua!
Considerações finais
Simplícia,
mesmo tendo sido oficialmente liberta no arraial em que morava, permaneceu
cativa nas cercanias, pois caso se afastasse muito não teria o concurso de seus
conhecidos para reafirmar novamente sua história e, neste caso, sua palavra
valia pouco em comparação a palavra dos brancos livres. Certamente o apoio que
recebeu quando dos seus cativeiros não teriam chegado se ela optasse por ir morar
numa província distante. Este é, portanto, um cativeiro indireto que contrabalançava
o aparente ganho de direitos, mantendo-se como uma sombra, um estigma, uma
ameaça sempre presente.
Por
este prisma, percebe-se que a vanguarda do Direito Brasileiro, fortemente
embasada na jurisprudência dos tribunais locais e no espírito de justiça cristã,
pouco fazia no contexto total da consciência de exploração escravagista. Fato
que na primeira oportunidade Simplícia voltava ao cativeiro. Por outro lado, a
esperança de uma justiça para os negros os acalmavam e “amansavam”, evitando
grandes rebeliões. Sem grandes rebeliões o sistema se perpetuava, reinventando-se
a cada necessidade.
É
importante observar que, ao recorrer à Justiça para fazer uso de seu ¨direito¨
de escravo injustiçado, o negro se reconhecia dentro do sistema escravista e o
legitimava, já que para fazer uso de seu direito deveria aceitar um curador,
situação não análoga ao restante da população. Acresce que a injustiça
denunciada, em geral, se baseava na contrariedade da vontade de um antigo
senhor ou nos atos “imoderados” dos atuais senhores, que ofendiam a moral
filosófica e religiosa da classe dominante. Portanto o sujeito a ser defendido
pelo Judiciário ainda era o branco livre, cidadão, sendo o escravo negro
favorecido ou não de acordo com o interesse da classe dominante. Acresce que
esta liberdade figurava com caráter precário, sem garantias para um futuro estável,
visto não alterar o paradigma colonial, ainda forte no Império, de que negro
devia ser escravo, submisso e tomado a qualquer tempo para retorno ao
cativeiro.
A
saga de Maria Simplícia pode ser tomada como um micro exemplo de um universo de
exploração de toda uma etnia no Brasil. Realmente, é difícil imaginar quantos
negros e negras sofreram semelhantes percalços, mas é certo que este tipo de vida simplícia, ou seja, uma vida de múltiplas
reescravizações, foi uma constante durante o final do período colonial e
imperial no Brasil, notadamente quando a cessação do tráfico da África demandou
novas artimanhas para se conseguir braços escravos.
Do
que foi analisado nesta pesquisa, pode-se concluir que a vanguarda do Direito
Brasileiro nas questões de liberdade para os negros, na primeira metade do
século XIX, cumpriu papel semelhante às diversas leis antiescravagistas da
segunda metade daquele século, as quais, longe de igualar os direitos de
liberdade, procuraram adiar até o último instante o fim de um regime econômico moribundo
e ultrapassado em todo o planeta. Neste sentido, a formação de uma
jurisprudência que contemplava favoravelmente os escravos negros nos processos
de liberdade também produziu o efeito de estigmatiza-los dentro da sociedade brasileira,
negando-lhes o reconhecimento como sujeitos de Direito.
Esta
pesquisa não esgota totalmente o assunto, pelo contrário, apresenta-se apenas
como um pequeno passo no sentido de dar uma visão mais realista aos caminhos do
Direito Brasileiro nos processos de liberdade na primeira metade do século XIX,
bem como suas consequências posteriores.
REFERÊNCIAS
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Typographia do Instituto Philomático, 1870 (edição fac-símile, Fundação
Calouste Gulbenkian).
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de Janeiro,14 jan. 1937.
AZZI,
Riolando (org.). A vida religiosa no
Brasil. Edições Paulinas, São Paulo, 1983.
BENCI,
Jorge. Economia Cristã dos senhores no
governo dos escravos. Coleção ontem e hoje, 3. São Paulo: Editora Grijalbo
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BRASIL.
Collecção das leis e decisões do Império
do Brasil de 1830. Parte 1. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1876.
CARVALHO,
José Murilo de. A construção da ordem;
A elite política imperial. Teatro de
sombras; política imperial. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008.
CÂMARA,
Nelson. O advogado dos escravos: Luiz
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EXTRACTO
do expediente do mez de maio de 1856. O
bom senso, São João del Rei, n. 422, ano 5, 14 jun. 1856.
FACTO
horrível, e escandaloso acontecido na villa de Tres-Pontes. O bom senso, São João del Rei, n. 421,
ano 5, 9 jun. 1856.
FONSECA,
Ferreira Lígia (coord.). Com a palavra
Luiz da Gama. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2011.
FREYRE,
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Ed. Comemorativa de 80 anos, apresentação de Fernando Henrique Cardoso, notas
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GRINBERG,
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ações de liberdade da Corte de Apelações do Rio de Janeiro no século XIX.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
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Martins Fontes, 2000 [1859].
JORNAL
DO COMMERCIO. Apontamentos para a
história da abolição da escravidão nas colônias portuguezas. Lisboa:
Typographia do Jornal do Commercio, 1880, 62 p., (opúsculo).
MALHEIRO,
Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão
no Brasil; ensaio histórico-jurídico-social. Volumes 1 e 2, Série
Brasílica, 9 e 10. São Paulo: Edições Cultura, 1944 [1866].
NABUCO,
Joaquim. Minha Formação. São Paulo:
Martin Claret, 2004.
NEQUETE,
Lenine. Escravos & magistratos no
Segundo Reinado. Brasília: Fundação
Petrônio Portela, 1988.
PAULO
FILHO, Pedro. Famosos rábulas no Direito
Brasileiro. Leme (SP): J. H. Mizuno, 2007.
REIS,
João José. Rebelião escrava no Brasil; a
história do levante dos Malês em 1835. 3. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
VIOTTI,
Emília. A Abolição. 9 ed. São Paulo:
UNESP, 2010.
MANUSCRITO
PROCESSO
de liberdade de María Simplícia (1831). Juntada de documentos manuscritos para
petição inicial. Arraial de Bonfim (MG), set. 1831, 8pp. Acervo doado ao
Arquivo Nacional.
[1] Embora
se trate apenas de uma petição inicial, entendemos que a publicação do
documento na íntegra poderia convir a outros pesquisadores, portanto publicamo-lo
no endereço seguinte: .
[2]
Rábula ou aprovisionado eram pessoas que trabalhavam como advogados, em
primeira instância, mas que não possuíam formação em Direito. Eram autodidatas
e práticos nos assuntos legais. Cf. PAULO FILHO, Pedro. Famosos rábulas no
Direito Brasileiro. Leme (SP): J. H. Mizuno, 2007.
[3]
Tribunal de segunda instância.
[4]
Uma criança filha de escrava nascida pouco antes do dia 28 de setembro de 1871
seria escrava; caso tivesse um filho aos vinte anos (1891), este viveria em
estado servil até os vinte e um anos (1912), em pleno século XX!
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