quarta-feira, 5 de junho de 2019

DE COMÉRCIO A TRÁFICO; As mudanças na província do Rio de Janeiro a partir de 1831

(LEILA CRISTINA GIBIN COUTINHO)
Artigo publicado na Revista Laboratório de História da UERJ, N. 2, jun. 2018.
DE COMÉRCIO A TRÁFICO; As mudanças na província do Rio de Janeiro a partir de 1831
(LEILA CRISTINA GIBIN COUTINHO - leilagibin@hotmail.com)

Resumo: Este presente trabalho pretende analisar as mudanças ocorridas na província do Rio de Janeiro a partir da implementação da Lei de 7 de novembro 1831 - também conhecida como Lei Feijó - que proibiu o comércio de africanos escravizados. Partimos do entendimento de que no Rio de Janeiro havia uma complexa estrutura montada para a realização do comércio escravista na região do Valongo, com o cais, os barracões, o cemitério entre outros, gerando trabalhos diversificados. Após aprovação da nova lei essas funções foram extintas ou realocadas, assim o tráfico teve que se reinventar para continuar existindo. Deste modo, o objetivo principal desse artigo constitui em desmistificar a ideia enraizada de que a Lei de 1831 foi apenas “para inglês ver”, ou seja, desconstruir o princípio que a lei foi apenas um disfarce para a Inglaterra de modo a possibilitar a continuidade do tráfico.
Palavras-chave: Escravidão; Rio de Janeiro; Lei de 1831; Valongo.



Abstract: This work has intends analyze the changes occurred on the province of Rio de Janeiro with the implementation of 7 November 1831’s law – also know how Feijó’s Law – it prohibits the trade of African enslaved. We start from de meaning that on Rio de Janeiro the was a complex structure to realization of the slave’s trade on Valongo’s area, with pier, barracks, cemetery between others, creating new and diversified form of work. After approval of the new law this functions have been extents or reallocated, o traffic needed reinvent to have continue. Thus, the first object of this article is demystify the idea rooted that 1831’s Low was just “for britisher see”, in other words, deconstruct the meaning of the law was only a disguise for England for give continues for traffic.
Keyword: Slavery; Rio de Janeiro; Law of 1831; Valongo.

A CIDADE DE SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO: O VALONGO
A colonização da América portuguesa, primou pela utilização da mão de obra escrava, inicialmente indígena. A partir de 1530 tem início o comércio atlântico de escravos africanos. Devemos levar em consideração a força que a comercialização de cativos teve no período colonial e no Império brasileiro, Pedro Paulo Funari afirma que a escravidão não é estabelecida apenas pela necessidade de mão de obra, mas também por constituir um comércio lucrativo. Assim como aponta Fernando A. Novais “é começando com o comércio de escravos que é possível entender a escravidão colonial” (NOVAIS apud FUNARI, 1996, p. 27).
Dessa forma, a escravidão se tornou um dos principais geradores de renda que movimentavam a economia colonial. No Rio de Janeiro não foi diferente, a cidade foi um local de grande circulação e utilização da mão de obra escrava. Honorato destaca a importância do escravo na cidade, pois numa sociedade em que o trabalho braçal era desprezado o escravo supria todos os serviços que precisassem do uso da força, trabalhos como carregadores de cargas, tigres, operários em oficinas, domésticos, escravos de aluguel e de ganho (HONORATO, 2008, p. 54).
O Rio de Janeiro se desenvolveu e ganhou notoriedade dentro do império português se tornando um dos portos mais movimentados da colônia. Também era o porto de escoamento de minérios vindos de Minas Gerais e porto de chegada de escravos a serem levados para essa mesma região. Esse foi um dos aspectos que justificam a transferência do vice-reinado para o Rio em 1763. 
Inicialmente o desembarque geral era realizado no Largo do Paço[1] enquanto o comércio de escravos era praticado na Rua Direita.[2] Esta última era a rua mais importante da cidade, nela existiam moradias dos negociantes, alfândega, repartições públicas, além dos armazéns que abrigavam os escravos recém-chegados e as casas dos comerciantes de escravos (CAVALCANTI, 2005, p. 41). Porém, o desembarque dos “pretos novos”[3] na região central da cidade causava incômodo nos transeuntes, os comerciantes destacavam as cenas que ocorriam com a chegada dos navios trazendo novos escravos: esses estavam seminus e realizavam suas necessidades em frente a todos (CAVALCANTI, 2005, p. 45). 
Mas o local de residência dos vice-reis passaria por transformações. Entre elas apontamos o deslocamento do comércio escravista da região central da cidade[4] para uma área mais afastada, na região periférica, no caso, o Valongo.[5] A transferência do local de chegada e comércio escravo da Rua Direita se justificava como uma questão sanitarista, devido ao temor da emergência de epidemias a partir das doenças trazidas junto aos escravos. Nesse entendimento, o comércio deveria ser deslocado para fora da área urbana, além disso, também foi proibida a lavagem de escravos no chafariz da carioca também devido a uma questão de saúde pública (CAVALCANTI, 2005, p. 42-43).
Em 12 de abril de 1774 o vice-rei Marquês de Lavradio transfere o desembarque e o comércio de escravos para o Valongo, região foi escolhida pela facilidade de acesso por mar e por terra, além da possibilidade dos “pretos novos” se banharem no mar (CAVALCANTI, 2005, p. 43). A estrutura exigida pelo transporte e a chegada dos “negros novos” era complexa, devido à necessidade de um aparato de segurança, água e alimentos (CARVALHO, 2012, p.226). Foi criada uma área especifica para o comércio escravista, um cemitério para aqueles escravos que chegavam e morriam poucos dias ou logo após o desembarque, além da criação do cais do Valongo[6] em 1811. Também existiam casas comerciais - conhecidos como barracões - era o local em que os “pretos novos” ficavam até receber alimentação e cuidados médicos para que pudessem ser comercializados, eram grandes casas em que na parte de debaixo ficava o escravo para a venda e o andar de cima morava o comerciante e sua família (HONORATO, 2008, p. 75).
Mercado de escravo no Valongo - iconografia de Jean-Baptiste Debret
Fonte: Braziliana Digital

A partir de relatos da época, Marco Antonio Teobaldo ressalta as terríveis condições em que se encontravam os “pretos novos”. Esses cativos em sua maioria estavam seminus, desnutridos, doentes e aglomerados em barracões, essa estadia nos poderia durar até um ano entre a data da chegada e a venda. Quando esses escravos não resistiam eram “enterrados” no Cemitério dos Pretos Novos,[7] jogados em covas rasas ou em valas comuns, estima-se que este cemitério de escravos foi o maior da América Latina, no local foram descartados cerca de 20 a 30 mil corpos. Os contemporâneos que passavam pelas proximidades contam que os cadáveres eram maus enterrados, em covas rasas e o cheiro na região era muito desagradável (CARVALHO, 2012, p. 251).
O porto do Rio de Janeiro era um local de constante aumento da demanda por escravos devido a questões relacionadas à exploração de minas no final do século XVII, a crescente produção açucareira, a produção de aguardente da terra e a para agricultura de abastecimento da região.  No século XVIII, o começo da produção de café, as mudanças administrativas e o deslocamento de funcionários como a transferência da capital também fez aumentar a demanda de escravos (CAVALCANTI, 2005, p.21-23).  
O comércio de escravos gerou uma série de novos trabalhos, dos mais variados, alguns com envolvimento direto com a venda e transporte de escravos e outros de forma mais indireta. Com a realocação do desembarque para o Valongo a região se tornou um dos principais pontos de chegada de escravos africanos na América, gerando ocupação para os moradores das proximidades. O Instituto Pretos Novos estima que cerca 1 milhão de escravos tenham chegado apenas no Valongo.
Escravos de ganho
Fonte: Views and Costumes (Lieutenant Chamberlain), disponível BN Digital.
Quitandeiros
Fonte: Views and Costumes (Lieutenant Chamberlain), disponível BN Digital.
OS INGLESES E O CONTEXTO INTERNACIONAL
A influência inglesa no Brasil teve início no período colonial, mais especificamente com ascensão de Napoleão e a transferência da sociedade de corte portuguesa em 1808. No século XVIII a Inglaterra estava se industrializando de forma pioneira em relação aos demais países europeus. Dessa maneira, a Grã-Bretanha almejava expandir seus domínios e influências em busca de mercados para vender seus produtos industrializados. No início do século XIX se constituía como grande potência, com uma poderosa esquadra marítima. 
Os ingleses pretendiam eliminar o comércio escravista sob alegação de princípios humanitários. Trazendo afirmações a respeito da liberdade, argumentando que todos os homens nascem livres e sendo contrários as terríveis condições que os escravos eram submetidos. A Inglaterra aproveitou os conflitos entre Portugal e França consolidou uma aliança com os portugueses no início do século XIX, dando auxilio, inclusive, para a transferência da corte portuguesa para o Brasil (GURGEL, 2006, não paginado). Contudo, os ingleses logo iriam cobrar pelo auxílio dado à mudança da corte, uma dessas exigências seria o fim do comércio escravista (CARVALHO, 2013, p. 98).
A pressão inglesa para o fim do comércio de escravos africanos teve início em 1810 culminando com a assinatura de um tratado em 1815 pondo fim ao comércio escravista nas regiões acima da linha do Equador. Em 1817 há um novo tratado que visava a proibição do comércio de forma parcial. Os acordos firmados no Brasil deram a Inglaterra o poder de fiscalizar e apreender navios que estivessem transportando escravos de origem africana de forma ilegal. Além da criação de um tribunal no Rio de Janeiro para julgar aqueles que fossem pegos na ilegalidade (COTA, 2011, p. 67). 
Havia interesses diversos envolvidos no comércio escravo em toda sua grande complexidade: dos próprios comerciantes, dos que faziam a travessia do atlântico e dos comerciantes locais da África, os que os transportavam escravos pelo o interior, os compradores e o próprio governo que lucrava com impostos. (FERREIRA, ROGRIGUES apud Carvalho, 2013, p. 100). Dessa forma, é perceptível o contingente de personagens de diferentes extratos sociais, de diferentes relações e atuações dentro desse comércio que foram afetados pelo fim de comércio atlântico de escravos, por tais razões se deu a resistência do governo português e posteriormente brasileiro em extinguir definitivamente esse comércio rentável. 
Em 1822 o Brasil proclama sua independência de Portugal, tendo como seu principal representante o Imperador Pedro I, um monarca português, filho de Dom João VI. Apesar de independente o Brasil continuou sob a influência estrangeira britânica. Uma das imposições para que os ingleses reconhecessem a emancipação brasileira do domínio português seria a continuidade dos tratados assinados citados acima (GURGEL, 2006, não paginado).
 Em 1824 é promulgada pelo Imperador a primeira Constituição Brasileira. Em momento algum a Constituição cita o termo “escravo”, mas no artigo número 6, parágrafo 1 podemos ver que os cidadãos brasileiros são todos aqueles “que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos [...]”, ou seja, se há o liberto, há também os não livres, nesse caso, o escravo.  A Constituição de 1824 contém características iluministas, defende a liberdade e a igualdade, mas carrega a contrariedade de manter o regime escravista. Defende-se, portanto, uma liberdade restrita e não acessível a todos. (COTA, 2011, p. 67). A partir de então, podemos perceber algumas das continuidades do período colonial que se estendem ao Brasil recém-independente como a utilização de mão de obra escrava. 
Desembarque de escravos no Valongo
Fonte: Johann Moritz Rugendas 1830
Navio Negreiro
Fonte: Johann Moritz Rugendas - 1830.
Em 1826 foi firmado um novo acordo entre Brasil e Inglaterra chamado “Convenção entre o Império do Brasil e a Grã-Bretanha para a abolição do tráfico de escravos”, a respeito do fim do comércio de escravos, que deveria ser cumprida em até três anos após sua ratificação realizada 1827 (CARVALHO, 2013, p. 101). Muitos deputados foram contrários a assinatura desses tratados justificando que esses tratados feriam a soberania nacional devido a manutenção de acordos originários do período colonial com envolvimento de nações estrangeiras, alegavam também que a economia brasileira era baseada na utilização de mão de obra escrava e que o fim desse comércio poderia causar um colapso no país que sofreria com a falta de mão de obra. Esses deputados defendiam ainda que a intenção inglesa não era de origem filantrópica, mas um subterfúgio para retirar a influência brasileira na África, para expandir seu mercado consumidor para seus produtos manufaturados e ainda obter matérias-primas (GURGEL, 2006, não paginado).
É importante ressaltar a grande demanda por escravos nos últimos anos de comércio legal devido à necessidade de mão de obra para a produção do café, algodão e açúcar perante a eminência do fim do comércio escravista. (FLORENTINO apud CARVALHO, 2013, p. 107). 
A influência inglesa seria um fator importante para o estabelecimento de várias leis que almejavam o fim da escravidão de forma gradual como as leis de 1831, 1850, 1871, 1885 e por último 1888 que definitivamente abolia a escravidão no Brasil.[8]

A LEI DE 1831: UMA LEI “PARA INGLÊS VER”?
Em 7 de Novembro de 1831 é decretada a lei que proíbe o comércio escravo. Ela foi produzida no período regencial durante a regência trina permanente e é assinada por Diogo Antonio Feijó.[9] Tal lei salienta a tentativa do governo imperial de mostrar aos ingleses o empenho em abolir o comércio de escravos. (GURGEL, 2006, não paginado). A lei afirma – em seu primeiro artigo - que são livres todos os escravos que cheguem de fora do império, é proibida a entrada de escravos vindos de áreas externas ao Brasil, ou seja, é ilícito o comércio atlântico de cativos, mas os escravos viventes no país continuavam escravos assim como seus filhos. A lei Feijó seria resgatada e usada nas décadas seguintes por determinar livres aqueles que fossem trazidos de forma ilegal e se tornaria o principal argumento para escravos buscarem sua liberdade na justiça (GURGEL, 2006, não paginado).
 O segundo e o terceiro artigo são significativos por estabelecer as penas para os importadores que são definidos como “commandante, mestre, ou contramestre” e todos aqueles que conscientemente contribuíram e/ou se beneficiaram de alguma etapa do processo de importação e venda. Ou seja, todos aqueles que se envolverem com o tráfico seja no processo de transporte, venda e compra poderão sofrer penalidades. A punição aos importadores é a mesma atribuída àqueles que escravizam os que são considerados livres de acordo com o artigo 179 do Código Criminal que prevê multa de 200 mil réis por cada livre escravizado somado aos custos da sua devida reexportação. Fica definido também que aqueles que denunciarem o comércio ilegal de escravos poderão receber 30 mil réis por cabeça.
Porém, tal lei não extinguiu a venda de escravos e a chegada dos mesmos vindos do continente africano. Assim teve início o comércio ilegal de escravos, ou seja, comércio se torna tráfico, este só teria fim em 1850 como aponta Cota:
O que se seguiu à promulgação da lei de 7 de novembro de 1831, também conhecida como lei Feijó, foi o completo desrespeito à legislação, não só por parte dos proprietários escravistas, mas por parte do próprio Estado. A ameaça de punição não intimidou os ‘importadores’ que contavam com a completa conivência do governo imperial, que procurava fechar seus olhos aos atos de pirataria (p.69).
Muitos autores ao analisarem o período de vigência da lei 1831 a chamam de lei “para inglês ver”[10] – expressão ainda usada atualmente para sinalizar leis que não são cumpridas - alegando que a venda e chegada de escravos continuou pelas vistas grossas feitas pelos governantes locais, como uma medida adotada apenas como um teatro para os poderosos ingleses. Porém, essa lei traz muitas alterações, a região do Valongo é exemplo disso, após 1831 a região é desativada. Ressaltamos também a presença de uma historiografia revisionista de autores como Keila Grinberg e Beatriz Mamigonian que desmistificam a ideia que a lei de 1831 foi uma lei para inglês, destacando impacto causado pelas mudanças e realocação do tráfico (CARVALHO, 2012, p. 225-226).

AS MUDANÇAS
Com a lei de 1831, a proibição do comércio escravo e a desativação do cais do Valongo, os traficantes se reinventaram para dar continuidade ao tráfico. A partir desse momento, o desembarque não é mais realizado na cidade, mas em áreas de menor circulação e de menor vigilância, em portos naturais, em regiões mais distantes como Paraty, Mangaratiba entre outras. Thiago Campos Pessoa aponta as praias distantes do Sul e Norte Fluminense como os principais locais de chegada dos “pretos novos” envolvendo uma nova gama de agentes principalmente os fazendeiros da região (PESSOA, 2013, não paginado). O Valongo e seus dependentes perdem sua principal função geradora de renda, os barracões são destruídos e cais desativado, o local perdeu sua principal atividade.
O começo do tráfico trouxe transformações ao litoral brasileiro, antes o desembarque de escravos era um cenário comum nas áreas urbanas do país, agora se tornou exclusivo das regiões da “Zona da Mata”. Além disso, houve alterações como o envolvimento de novos personagens, as transformações afetaram tanto a antiga região portuária urbana (nesse caso, a região do Valongo) de desembarque como para as áreas de desembarque ilegais dos portos naturais (CARVALHO, 2012, p. 225).
Novos mecanismos são criados desde a compra na África ao destino final de comercialização ilegal de forma a contornar a fiscalização inglesa (KLEIN apud PIRES, 2005, p.4). Existia uma prática comercial escravista consolidada com o trabalho de pessoal especializado e o estabelecimento de uma rotina, porém depois de 1831 as coisas mudam, não existia a mesma estrutura montada nos portos naturais, todo esse aparato precisaria ser construído. Nesse período, também ocorre uma valorização dos portos naturais que fossem mais afastados da fiscalização e ao mesmo tempo mais próximos dos mercados, das vilas, das fazendas de café ou dos engenhos, além do aumento do poder de quem controlava esse porto (CARVALHO, 2012, p. 228-229). 
Pessoa estudou o caso particular de uma família de traficantes no Rio de Janeiro, os irmãos José e Joaquim Breves, que tinham propriedades localizadas no sul fluminense. Os irmãos fizeram fortuna com a produção de café e também com o tráfico de escravos, estes não participavam do comércio de cativos antes da lei de 1931, mas faziam parte dos novos personagens envolvidos nas mudanças surgidas da ilegalidade.
 Tanto Pessoa como Marcus Carvalho destacam a reorganização do tráfico no Brasil com a lei de 1831, estes traficantes buscavam por áreas litorâneas mais distantes do controle do Estado. Além disso, o tráfico se constituía de uma “profissão” de risco, pois os traficantes poderiam ser pegos por uma fiscalização e acabar perdendo toda sua mercadoria e ainda arcar com as penas definidas por lei. Carvalho aponta a modificação dos tipos de embarcações, que eram menores o que trazia um risco maior de danificar o barco e próprio naufrágio. Havia também o risco de fuga ou roubo do africano escravizado e de uma rebelião. O tráfico era um negócio arriscado como demonstra Carvalho: “O tráfico ilegal não era negócio para amadores” (CARVALHO, 2012, p. 230). 
Pessoa aponta que “após 1830, barracões e fazendas do litoral recriavam as estruturas outrora destruídas pela lei de 7 de novembro de 1831. Canoas, barracões para quarentena e locais de "engorda" conformavam as estruturas de recepção” (PESSOA, 2013, não paginado). Já Marcus Carvalho nos relembra o estado em que os escravos chegavam: famintos, nus, debilitados e doentes (CARVALHO, 2012, p. 245). Pessoa afirma que o surgiram vários trabalhos nessas regiões para suprir as necessidades do tráfico, uma nova gama de pessoas se envolve. Era necessário pessoal especializado que falasse línguas africanas, além do responsável pela venda dos escravos nas fazendas e aqueles que os deslocavam os escravos para a quarentena. 
Salientamos que diversos grupos locais se beneficiaram com as mudanças como os senhores de engenhos das áreas litorâneas mais afastadas do Centro que tinham controle sobre os portos naturais. Também os agricultores que ganharam consumires. Foi gerando trabalho aos barqueiros, pescadores, pessoal para trabalhar na vigilância contra roubos, fiscalização e fugas, médicos ou barbeiros para sanar enfermidades dos cativos e até mesmo padres para a realização dos batismos (CARVALHO, 2012, p. 254).
Da perspectiva dos africanos escravizados as coisas só pioraram após a lei Feijó, o regime escravista já tão cruel tornava a situação mais crítica com o início do tráfico, pois esses africanos desembarcavam em locais com uma estrutura ainda mais precária, acabavam ficando mais tempo nos navios devido a maior distância dos portos de desembarque ilegais e podiam ficar dias esperando o momento perfeito para o desembarque. E quando não tinha que caminhar por dias até o local onde seriam comercializados. Lembremos que esses escravos não eram passivos em todo em processo, muitos desses fugiam e se refugiavam em quilombos em torno da capital imperial (GOMES apud CARVALHO, 2012, p. 231).
Carvalho enfatiza a utilização de embarcações menores para que passassem discretamente e não fossem descobertos pela vigilante marinha inglesa, pois supunha-se que um navio de grande porte que não estivesse em rota a um dos portos principais do litoral brasileiro deveria ser um navio que traficava africanos para serem vendidos como escravos. Passaram a ser usadas embarcações como escunas e sumacas, esses navios muitas vezes eram abandonados após o desembarque. Essas pequenas embarcações também traziam um número grande de africanos, números entre 100 a 150 e até 300 africanos, em alguns casos não haveria nem espaço para estes se deitarem (CARVALHO, 2012, p. 232-233).
Os traficantes corriam riscos de serem pegos pela fiscalização - tanto inglesa como brasileira – por isso o desembarque também deveria ser feito de forma rápida para não serem notados e também porque os cativos não poderiam permanecer durante muito tempo a bordo da embarcação, devido a falta de higiene e dos alimentos e bebidas necessárias, causando maior mortalidade. Então, é necessário entender o cuidado de chegar ao porto certo, mais um risco do comércio ilegal, como o roubo da mercadoria (CARVALHO, 2012, p. 241-242).
O tráfico seria extinto com a lei 4 de setembro de 1850 chamada de Lei Eusébio de Queiroz. Essa lei trouxe uma política de combate ao tráfico mais eficaz que a lei de 1831, cedendo novamente as pressões inglesas. A lei de 1850 também trouxe a anistia aos antigos traficantes (COTA, 2011, p. 70). Segundo Jaime Rodrigues uma das razões para eficácia dessa lei em relação a de 1831 foi que a lei de 1850 punia somente os traficantes, assim considerava apenas os traficantes como os responsáveis acabava por aumentar o risco da comercialização ilegal para os mesmos (RODRIGUES apud Silva, p.11).
Na segunda metade do século XIX o movimento abolicionista regataria a lei de 1831 como base para o combate a escravidão, personagens como Luiz Gama passaram a usar a lei como um argumento para a libertação de escravos trazidos ilegalmente da África. (COTA, 2011, p. 70). Ou seja, mais uma vez reforçamos a ideia que a lei de 1831 não foi uma manobra dos brasileiros como uma lei não efetiva, a lei foi usada como justificativa legal por advogados para garantir a liberdade daqueles que foram escravizados ilegalmente e ainda lutar pelo fim da escravidão. Assim seria a primeira lei que daria continuidade a muitas leis que culminaria em 13 de maio de 1888 - com a Lei Áurea assinada pela princesa Isabel – que abolia definitivamente da escravidão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir que a proibição do comércio de africanos escravizados não se constituiu apenas como uma tentativa de atender as exigências inglesas, de modo a atuar como disfarce para que a venda e importação ilegal de escravos pudesse ter continuidade, apesar das vistas grossas do Estado feita ao tráfico. A nova lei transformou regiões e alterou as dinâmicas da vida da população que se desenvolveu em torno desse infame comércio,[11] principalmente para os habitantes das regiões litorâneas seja no Valongo, em Paraty ou na África. A lei também foi significativa ao ser utilizada como fundamento para escravos buscarem sua liberdade na justiça. 
Desde então, o tráfico se tornava um negócio arriscado para o traficante, ou seja, era incerto pela possibilidade da perda da mercadoria por roubo, pela possibilidade dos escravos serem apreendidos pela fiscalização e pela punição prevista em lei. A adaptação do tráfico traz mais sofrimento e desgaste aos escravos, estes poderiam andar por dias até o local de venda e permanecer mais tempo no mar sem as mínimas condições de higiene em embarcações pequenas e superlotadas.
Após a lei de 1831 a função do Valongo foi se modificando, a região passou por várias tentativas de apagar seu passado escravista, a primeira delas foi a construção do cais da Imperatriz Teresa Cristina em 1843 sobreposto ao antigo cais do Valongo, o porto deixava de ser o local de chegada de escravos e passava a simbolizar a presença da nobreza. No começo do século XX a República também tentava apagar as visíveis marcas deixadas pela escravidão, ao mesmo tempo em que lidava o “destino” do ex-escravos. Uma das iniciativas tomadas foi a troca do nome da Rua do Cemitério – região do cemitério dos “pretos novos” - para Pedro Ernesto, a região foi revitalizada no intuito de reconstruir a história do local. O prefeito Pereira Passos, ao promover reformas urbanas no Rio de Janeiro, tentou apagar o passado da região de venda de escravos, valorizando a área com o singelo Jardim Suspenso do Valongo. 
Apesar dos esforços de esquecimento do período escravista o passado ressurge, seja pela redescoberta do Cemitério dos Pretos Novos ou do cais do Valongo, que hoje é Patrimônio Cultural Carioca pertencente ao Circuito de Herança Africana e também candidato a Patrimônio da Humanidade do Centro de Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Segundo Milton Gurano o cais do Valongo é o único cais de chegada de escravos preservado, os demais foram destruídos ou encobertos. Portando, necessitamos entender os danos causados pela escravidão e como ela continua exercendo continuidades nas vidas dos seus descentes e na sociedade fluminense e na brasileira como um todo.
A escravidão como o sistema de longa duração que marcou vidas e locais como o Valongo. Por último, afirmamos ainda que a lei Feijó teve significação e modificou a vida de vários agentes históricos, escravos, traficantes, compradores. É de caráter muito simplista analisar o que foi 1831 como uma lei de fachada ao nos deparamos com toda reinvenção, modificação e a atuação de novos agentes na ilegalidade. Assim concluo que a lei de 1831 trouxe modificações reais na vida litorânea brasileira e possibilidades reais de escravos pleitearem por sua liberdade.

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[1] Atual Praça XV de Novembro.
[2] Atual Rua Primeiro de Março.
[3] Nome dados aos escravos recém-chegados ainda não vendidos.
[4] O Largo do Paço poderia ser considerado como o coração do Rio pela sua centralidade entre quarto os morros – Conceição, São Bento, Santo Antônio e Castelo - em que a cidade se constituiu, pela a localização do porto e por se uma área de grande movimento.
[5] Hoje em dia compreende os bairros de Saúde, Santo Cristo, Gamboa.
[6] Segundo a arqueóloga a Tania Andrade Lima o cais do Valongo corresponde ao trecho entre as ruas Coelho e Castro e a Sacadura Cabral, contanto com aproximadamente 350 metros de comprimento (LIMA apud PELLI, 2011).
[7] Em 1996, Petrúcio e Maria de la Merced Guimarães, descobriram ossadas humanas após a realização de obras em seu imóvel na Rua Pedro Ernesto, mais tarde a área seria identificada como o antigo Cemitério dos Pretos Novos que foi desativado em 1830. O casal abraçou a causa de preservar a memória do local e o transformou no Instituto de Memória aos Pretos Novos, que está aberto à visitação do público.
[8] Não podemos esquecer que para o desenvolvimento de tais leis também foram de suma importância a resistência escrava e o movimento abolicionista.
[9] Ministro da Justiça e posteriormente regente uno entre 1835 a 1837.
[10] Busquei observar em dois livros didáticos como ambos travam a temática de lei de 1831. O primeiro deles foi História do Brasil – Nova Consciência de Gilberto Cotrim (2001) voltado para a antiga 6ª série e não encontrei menção a lei nem no trecho que trabalha o Período Regencial e nem na parte voltada para a abolição, onde só ganham destaque as leis do ventre livre, a lei dos sexagenários e a própria abolição, o que demonstra que a lei Feijó é vista com pouca importância. O segundo livro História – Volume único (2008) por Gislane Azevedo e Reinaldo Seriacopi apresenta a lei de 1831 no contexto de extinção do tráfico e reforçam a ideia de que a lei foi apenas um artifício para seguir com os tratados firmados com os ingleses e ao mesmo tempo dar continuidade ao tráfico, as mudanças são deixadas de lado (p. 357).
[11] Termo cunhado por Jaime Rodrigues.


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