domingo, 30 de julho de 2017

“INJURIOSO E ULTRAJANTE”, AS CARTAS FALSAS DE ARTHUR BERNARDES


"Insulting and outrageous", the letters of Arthur Bernardes
Marco Túlio Freire Baptista*
(Artigo publicado na Revista do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil n. 103, baixe o PDF)

 Resumo: Esta pesquisa teve por objetivo analisar as circunstâncias em que ocorreu a disputa eleitoral para a Presidência da República do Brasil para o mandato de 1922 a 1926, tendo como foco central o grande escândalo, profusamente noticiado nos jornais, das cartas ofensivas a honra militar atribuídas ao, então candidato, Arthur Bernardes. O episódio causou um grande racha na sociedade brasileira, observável em todos os seus estratos sociais e pela intensa batalha jornalística que acompanhou ativamente a campanha. Neste contexto, a classe armada se envolveu nas disputas e acabou por vitimar viceralmente as Forças Armadas Brasileiras.


PRELÚDIO

Em fins de julho de 1921 a providência deu seus primeiros sinais do tenebroso período em que estaria mergulhada a política nacional na capital brasileira, o Rio de Janeiro. No dia 24 falecera, abrupta e prematuramente, aquele que foi o maior fenômino da crônica carioca, o jornalista Paulo Barreto, ou João do Rio como era conhecido. Seu corpo embalsamado foi velado e chorado por milhares de pessoas no hall de entrada do prédio do jornal “A Pátria”.[1] Diante de seu corpo inerte, vestido com a túnica de gala da Academia Brasileira de Letras, perfilaram desde as maiores autoridades e persolidades da sociedade carioca e brasileira até o cidadão comum, acostumado a instruir-se na sagacidade inteligente de suas crônicas publicadas nos jornais em grandes tiragens. Vertiam-se lágrimas pelo que, inconscintemente se sabia, iriam perder: uma crítica precisa e autêntica do maior escândalo da política nacional, envolvendo viceralmente as Forças Armadas.
O autor de obras imortais, como “A alma encantadora das ruas” e “As religiões do Rio”, perderia, assim traído pelo destino, a oportunidade de despejar sobre os fatos, já delineados nos subterrâneos das intrigas e do malcaratismo, toda a sua acidez e objetividade de cronista inigualável do caráter humano. João do Rio, sempre capaz de lançar uma palavra nova sobre o que já se sabia, transformando o corriqueiro num grande alerta para a sociedade, certamente teria dado diferentes rumos à sórdida batalha que se desenvolveria nos meses seguintes nos jornais de todo o país. Na edição do Jornal do Brasil de 25 de julho, a notícia da morte de João do Rio ironicamente disputava espaço na mesma página com o lançamento da chapa Nilo-Seabra, da Reação Republicana, que faria oposição ao candidato oficial, Arthur Bernardes, na campanha presidencial que iniciava.[2]
A disputa eleitoral desde o início foi marcada por graves trocas de ofensas entre nilistas e bernardistas, mas se intensificou quando vieram a tona as cartas de Arthur Bernardes ofensivas à classe armada, incendiando definitivamente a campanha e acirrando os ânimos das duas partes.

ENTÃO, AS CARTAS...

Em oito de outubro[3] por volta das duas horas da tarde, Mário Rodrigues, redator político do Correio da Manhã, recebeu um telefonema do senhor Irineu Machado que procurava Edmundo Bittencourt, fundador e proprietário do jornal. Como este se encontrava na estação de águas de Lindoya, em São Paulo, dispôs-se a lhe apresentar o seu intento. Informou que estava na presença de uma pessoa que possuia um importante documento de grande interesse político. Adiantou que esta pessoa estava de partida no dia seguinte para a Europa e pretendia entregar os documentos ao senhor Edmundo Bittencourt, mas que na sua ausência entregaria a um redator do Correio da Manhã. Por isso, solicitou-o que fosse buscar em sua casa. Mário Rodrigues tomou um taxi e rapidamente chegou na residência de Irineu, onde foi apresentado a Oldemar Lacerda, o portador de duas cartas de Arthur Bernardes, presidente de Minas Gerais e candidato à Presidência do Brasil no pleito que se avizinhava, ambas dirigidas ao Sr. Raul Soares, as quais continham diversas ofensas ao Exército Brasileiro e ao Marechel Hermes da Fonseca. Diante de algumas indagações sobre “pontos obscuros” e sobre a autenticidade, Irineu Machado forneceu-lhe outra carta de Arthur Bernardes endereçada ao deputado Ribeiro Junqueira, como elemento de comparação quanto a legitimidade das anteriores. A condição para a publicação era somente aguardar que Oldemar chegasse à Europa.[4]
Mário Rodrigues entregou-as a um diretor do Correio da Manhã, Raimundo Silva. Ansioso pela publicação, mas necessitando tomar alguma precaução, Raimundo Silva, acompanhado de Amálio Silva, se dirigiu ao tabelião Fonseca Hermes, irmão do Marechal, a fim de reconhecer oficialmente a assinatura de Arthur Bernardes. Atendidos pelo tabelião substituto, este se recusou a reconhecer a firma de Arthur Bernardes, visto que em sua ficha constava a assinatura com o nome completo, Arthur da Silva Bernardes, e não como se apresentava na carta: Arthur Bernardes.[5]
No dia seguinte, domingo, 9 de outubro, uma das cartas foi publicada no Correio da Manhã sob o título “Injurioso e Ultrajante”, acompanhada de um artigo intitulado “Ultraje ao Exército”, no qual o redator desfiava o rosário de adjetivos pejorativos que, segundo ele, Arthur Bernardes atribuíra aos oficiais do Exército na sua carta dirigida ao Senador e Ministro da Marinha, Raul Soares. A carta era datada de três de junho daquele ano e tratava do banquete que os oficiais da Guarnição do Rio de Janeiro ofereceram no dia anterior ao Marechal Hermes da Fonseca. Referia-se ao Marechal, ex-Presidente da República, como “um sargentão sem compostura” e seguia nos desaforos taxando o banquete de “ridículo e acintoso” e como uma verdadeira “orgia”. Demonstrando um rancor com o Exército ao ponto de recomendar ao Ministro da Marinha que usasse de “toda energia”, de acordo com suas “últimas instruções”, pois “esta canalha” (referindo-se aos oficiais) precisava ter “uma reprimenda para entrar na disciplina”. Além disso, também exortava a Raul Soares que interferisse no Palácio do Catete para ver, conforme constava na carta, “se o Epitácio mostra agora a sua apreogoada energia, punindo severamente esses ousados, prendendo os que sairam da disciplina e removendo para longe esses generais anarchizadores”. Por último, depois de atacar os oficiais, teria direcionado sua fúria para o próprio Presidente, Epitácio Pessoa, recomendando a Raul Soares nos seguintes termos: “se o Epitácio com medo não attender, use de diplomacia que depois do meu reconhecimento ajustaremos contas”. O artigo aponta, também, onde Bernardes supostamente teria tido o máximo de audácia e injúria à oficialidade, quando refere que “a situação não admitte contemporizações e os que forem venaes, que é quasi a totalidade, compre-os com todos os seus bordados e galões”.[6]
É verdade que a acidez e falta de compostura apresentadas na carta chamaram a atenção por não ser compatível com a conduta habitual do presidente de Minas Gerais que, de imediato, contestou a autenticidade da carta.[7] No entanto, os termos e acusações presentes nas cartas sugeriam também uma certa verossimilhança com os sentimentos que muitos estavam cultivando pelo Exército e a Marinha. Como uma espécie de desabafo, que teria amparo em muitas outras gargantas de políticos, militares e civis.
Fato é que a República nascera da usurpação de poder do Império pelos militares; Deodoro nem chegara ao final de seu mandato e tivera o poder usurpado por Floriano Peixoto, mesmo contrariando fortemente a primeira Constituição. Daí por diante, a conduta militar caracterizou-se, em boa parte, pelo poder político, tendo seu auge com a presidência do Marechal Hermes da Fonseca (1910-1914), quando o estrato superior das Forças Armadas se transformaram em verdadeira classe política. A classe militar ansiosa por direitos de cidadania, não só não renunciava a sua condição de integrante do Estado, como se utilizava da força que esta condição lhe dava para lutar por mais poder, de dentro para fora. Dessa forma não eram parte de um movimento da sociedade, e sim do Estado. José Murilo de Carvalho fala em “estadania”, ou seja, a consolidação da cidadania vindo do próprio Estado e não da sociedade.[8] É nesse clima que os excessos e a ambição de poder deixaram profundas marcas na sociedade com relação a classe militar inserida na política. Chegou-se na segunda década do século XX com um forte rancor dos políticos civis contra a classe militar, bem como desta contra os primeiros.

O RANCOR MILITAR

            Os Imperadores do Brasil mantiveram Ministros civis nas pastas da Guerra e da Armada na maior parte dos gabinetes do Império, contudo isto mudou após a República e, para contentamento dos militares, estas funções máximas das Forças passaram a ser ocupadas por Oficial Generais. No entanto, passados quase 30 anos, com a assunção da Presidência por Epitácio Pessoa, este quadro mudou novamente, nomeando os civis Pandiá Calógeras e Raul Soares para as pastas da Guerra e da Marinha; o segundo, posteriormente foi substituídos, sucessivamente, por Ferreira Chaves e Veiga Miranda.[9]
            Em meados de 1921, o Governo de Epitácio e a classe armada encontravam-se em plena oposição. Falava-se abertamente em perseguição aos militares pelo Governo e movimentações (transferências) arbitrárias.[10] Um incidente caracterizou bem os rancores da classe armada, foi a prisão do capitão-tenente Luiz Autran de Alencastro Graça devido ao seu discurso num jantar realizado no Palace Hotel, que fora oferecido pela guarnição da capital ao Marechal Hermes da Fonseca. Neste discurso o comandante Graça teria exposto a situação precária da Armada perante a cúpula da oficialidade. Tendo sido publicado nos jornais por jornalistas que estavam presentes ao evento, a reação dos Ministros da Guerra e da Marinha foi a prisão do referido oficial, por oito dias, no presídio da Ilha das Cobras.[11] Os Ministros da Guerra e da Marinha eram, respectivamente, Pandiá Calógeras e Raul Soares. Este último, justamente o destinatário da carta ofensiva ao Exército publicada pelo Correio da Manhã e que tinha data de 3 de junho, dia seguinte ao evento ...
Se as ofensas contidas nas cartas podiam parecer demonstrar esse rancor, o primeiro desfiar do novelo de maquinações subterrâneas logo levou ao círculo íntimo do Marechal Hermes da Fonseca, o possível beneficiado com a destruição da candidatura de Arthur Bernardes. E, lembrando-se que as cartas foram entregues por Oldemar Lacerda, cumpre questionar o quanto este cidadão era confiável diante de uma denúncia tão grave.

OLDEMAR LACERDA

            Logo que o escândalo ganhou as manchetes dos jornais e despertou os debates políticos por todo o Brasil, um nome veio a tona, Oldemar Lacerda, e o quebra-cabeças das maquinações, que ocorreram meses antes, começavam a se desvendar.
Mas quem era este homem que conduzira as cartas de Arthur Bernardes à publicidade nacional? O nome Oldemar Maria de Lacerda figura no Almanak Laemmert de 1910 como capitão assistente do estado-maior da 3° Brigada de Infantaria da Guarda Nacional da Capital Federal.[12] Da mesma forma (capitão) aparece em Diário Oficial de 1912, como presidente de Junta de Alistamento da 9° Região Militar do Distrito Federal.[13] Segundo Magalhães, Oldemar, através dos filhos de Hermes da Fonseca, passara a frequentar o Palácio do Catete, durante a presidência do Marechal (1910-1914).[14] Assim, vivia de traficar influência para fornecimento de mercadorias para o Governo, beneficiando comerciantes e industriais. A proximidade com o círculo íntimo da família do Marechal pode ser percebida em evendo mais reservados naquele período, como o batizado do filho do tenente Leôndas da Fonseca, neto de Hermes da Fonseca.[15] Também uma fotografia publicada na Revista da Semana e também na revista Fon-fon, que ilustra a posse do Marechal Hermes da Fonseca na presidência do Clube Militar, na qual Oldemar aparece próximo de Nair de Tefé, esposa do Marechal.[16] Outra imagem que se costuma apontar como proximidade com a família de Hermes da Fonseca é a caricatura de Oldemar feita por Nair de Tefé e publicada duas vezes na Gazeta de Notícias.[17] No entanto, esta pode (e deve) ser atribuída mais à percepção sarcástica da cartunista que o identifica como “Homem do Dia”, por ascender rapidamente às manchetes dos jornais e ser alvo dos comentários políticos, após o escândalo das cartas.
            Em 1916, Oldemar Lacerda foi lembrado pelo senador João Luís Alves que estava em disputa pela sucessão do governo do Espírito Santo. Dentre seus planos estava a ideia de forçar uma intervenção federal. Planejando conflagar o estado, confiou a Oldemar a tarefa de comprar armamento. O Gatuno não conversou, meteu a mão numa considerável quantia e enviou para Luís Alves caixotes repletos apenas de serragem.[18]
            Infiltrar-se na alta sociedade parece ter sido sua estratégia para adquirir influência, ou pelo menos, parecer tê-la. Desta maneira seu nome também estava associado às corridas de cavalo, como “turfman”,[19] o que provavelmente não o era. E nas grandes festas de agremiações sociais, como foi o caso de sua participação, no setor de buffet, da comissão de organização da festa do Clube São Cristóvão, noticiada pela Gazeta de Notícias em junho de 1914.[20]
            Apesar de parecer ter certo prestígio, seu nome figurava mesmo era nas páginas policiais. Sendo os casos mais notórios o contrabando de Gonçalves Campos & Cia e o desvio financeiro na firma Pinto Lima. O primeiro caso, ocorrido em 1915, Oldemar exercia a função de fiel da Alfândega e foi acusado de tentar subornar os continos do Tesouro e roubar os autos do processo judicial do caso de contrabando da empresa Gonçalves Campos.[21] O segundo caso, tratava-se do inquérito da 1ᵃ Delegacia Auxiliar, no qual Oldemar era acusado de, enquanto caixa da firma Pinto Lima & C, ter desviado a quantia de 111.660$789 e de ter falsificado documentos bancários em nome da firma, como a carta de crédito em favor do construtor Luiz Zanni que retirou material da casa Soares & C.[22]
Figura 1: Caricatura de Oldemar Lacerda feita por Nair de Tefé (Rian) sob o título “O homem do dia”.
Fonte: Gazeta de Notícias, n. 323, 10 dez. 1921, p. 1.

            Embora a façanha tenha lhe rendido alguns meses de cadeia, de finais de 1919 para início de 1920, os grandes empresários parecem não terem se preocupado com isso. A Capital Federal se preparava para comemorar seu primeiro centenário de Independência e entre os preparativos estava o arrasamento do morro do Castelo, tarefa de interesse para empresas nacionais e estrangeiras. A empresa Pearson Incorporation logo se ligou a Oldemar para garantir sua preferência na concessão. Sempre pronto a criar ilusões, Oldemar apresentou à empresa uma fotocópia de uma carta do Presidente Epitácio Pessoa para o prefeito do Rio, escrita em papel timbrado do Palácio do Catete, na qual recomendava a preferência da empresa Pearson. Como levantou-se dúvida quanto a assinatura do Presidente, ele apresentou um decreto assinado por Epitácio como comprovação da autenticidade da assinatura. A transação, ou porque a sua comissão era muito alta, ou porque desconfiou-se da honestidade de Oldemar, acabou sendo dispensada pela empresa.[23]
Em julho de 1921 o senhor Emílio van Linden, gerente da Companhia Transmarina (fornecedora de material ferroviário),  recorreu a Oldemar para conseguir preferência de sua empresa no fornecimento de material e trilho para a Estrada de Ferro Central do Brasil. Rapidamente providenciou-se uma proposta, que ele levou consigo para trazer, logo em seguida, devidamente protocolada e com um despacho favorável do diretor da Central. De tempos em tempos, Oldemar solicitava uma quantia a troco de “gorjetas e gratificações” para os funcionários e o tempo ia passando. Convocado a dar provas da veracidade do negócio, apresentou uma certidão de despacho de aceitação da propostas que dava o prazo até outubro para efetivação. Nem precisa pensar muito para se concluir que era tudo falso! Daí, Oldemar resolveu sumir um pouco e anunciou sua partida para Europa para tratar de assunto urgente sobre o arrendamento da ilha de Trindade.[24]
Esta última mutreta de Oldemar deixou-o premido pelo tempo, necessitando “desovar” as cartas falsas rapidamente, com a chegada de outubro. Dessa maneira a trama subterrânea se fez atabalhoada e com o conhecimento de diversas pessoas, civis e militares.

O SUBTERRÂNEO

            A trama teve início alguns meses antes de ser deflagrada a batalha nos jornais. Segundo declarou Edmundo Bittencourt na sua folha, ele já tinha conhecimento das cartas desde junho daquele ano.[25] A questão teria começado devido Oldemar, habitual traficante de influência, ter ponderado que a falência da candidatura do Marechal Hermes da Fonseca lhe reduzira às possibilidades de negócios. Assim, maquinou atentar contra a candidatura de Arthur Bernardes e reanimar as possibilidades do Marechal, a quem granjeava proximidade nos círculos de amizade. Por esse motivo solicitou a Jacinto Cardoso de Oliveira Guimarães, conhecido falsificador, que  produzisse uma carta que incompatibilizasse Arthur Bernardes com Hermes da Fonseca, diante da classe militar.[26] Por outro lado, a venda da carta poderia lhe garantir um bom dinheiro para empreender seu necessário desaparecimento do Brasil por algum tempo.
            O irmão do Marechal, o tabelião Fonseca Hermes, contou em depoimento que fora procurado por Oldemar Lacerda em sua residência, acompanhado dos senhores Dr. Pedro Burlamaqui e Anacreonte Borba Gomes. Oldemar teria lhe exibido um retalho de papel com a assinatura de Arthur Bernardes e questionado se ele reconhecia a assinatura do presidente de Minas Gerais e, ainda, se possuía alguma correspondência do mesmo que pudesse usar de comparação. A este questionamento, Fonseca Hermes teria informado que a única carta que possuía era uma destinada ao Dr. João Luís Alves “a propósito do processo de reconhecimento dos poderes para a constituição da Câmara” naquela legislatura. E, como não sendo sua, não poderia fornecer. Esclarecendo seu interesse, Oldemar teria informado que possuía uma carta de Arthur Bernardes que poderiam impossibilitar a sua candidatura, além de oferecer a mesma, caso Fonseca Hermes visse possibilidade de salvar a candidatura do Marechal. Ainda questionado sobre a autenticidade da carta, Oldemar esclareceu que o perito Serpa Pinto já as examinara e dera como verdadeiras.[27]
            Interessante notar-se que, brevemente, Serpa Pinto seria o perito “idôneo” escolhido pelo Clube Militar para avaliar a autenticidade das cartas, mesmo pesando publicamente sobre ele diversas acusações que atentavam contra o seu caráter; inclusive um processo de estupro de uma menor que corria no Cartório do 5° Ofício de Niterói.[28]
            Como Fonseca Hermes, para tomar uma decisão, tivesse condicionado examinar ele mesmo a carta, a qual não haviam sido levada, a questão ficou em suspenso até que ele, por intermédio do irmão de Oldemar, João Maria de Lacerda, solicitasse novamente que mostrasse a carta. Numa segunda entrevista, Oldemar ainda não lhe mostrou, mas antecipou seu total conteúdo.[29]
            Não vendo muito futuro com o tabelião, irmão do Marechal, Oldemar procurou Irineu Machado, político experiente, engajado na campanha de Nilo Peçanha, contudo sem o menor entusiasmo, pois o Marechal mais lhe convinha. Ao ver o conteúdo e a redação da carta, Irineu Machado se agradou muito do serviço e sugeriu uma nova carta, esta, datada de 3 de junho, teria um teor mais ácido, justamente a primeira que foi divulgada pelo jornal Correio da Manhã. Para a redação desta segunda carta, Oldemar adquiriu a correspondência de Arthur Bernanardes enviada ao Dr. João Luis Alves que estava em poder de Fonseca Hermes para servir de modelo. Como Fonseca Hermes não o entregara voluntariamente, Oldemar acertou-se com o filho do tabelião, Eduardo, que subtraiu a referida carta da escrivaninha de seu pai, em um momento de ausência.[30]
            Até este ponto, o irmão do Marechal tinha conhecimento da trama e o sobrinho estava completamente envolvido, já que fornecera material para a falsificação.
            Outro militar de elevada patente também fora procurado por Oldemar, trata-se do coronel Philadelpho Rocha. Segundo seu próprio depoimento ao “Rio – Jornal”, tinha conhecimento, desde junho, de um “trabalho” de Oldemar para dar ganho de causa a candidatura do Marechal Hermes. Em um novo encontro em setembro, Oldemar teria dito ao coronel que o Marechal era um “trouxa”, por ainda ter escrúpulo em política. Nessa ocasião, Oldemar o teria explicado que o “trabalho” tratava-se de uma carta ofensiva ao Exército e ao Marechal, com “autoria” de Arthur Bernardes e que daria “um tiro” na candidatura deste. Mas, que no entanto, não aceitara. Ciente da farsa, o coronel Philadelpho se calou até novembro, quando o escândalo já era grande e depois de o Clube Militar votar favorável pelo exame da carta. Em sua entrevista, também citou outros conhecedores da farsa, tais como o comandante Alencastro Graça (da Armada), o senador Frontin, o Dr. Raphael Pinheiro, o Dr. Lacerda de Albuquerque, o Sr. Adolpho Moreira, o capitão Cunha Mattos (da Escola de Aperfeiçoamento), deixando claro que muitos outros também tinha conhecimento.[31]
Como se pode observar, as histórias sobre as cartas falsas já vinham desde junho, portanto quando estourou o escândalo com a publicação pelo Correio da Manhã, muitos poderiam ter denunciado, mas ou não o fizeram ou fizeram deliberadamente tarde demais. Acresce que o envolvimento de Oldemar, por si só, já desacreditaria a veracidade das cartas, já que era por demais conhecido por suas falcatruas. No entanto, foi na legitimidade de um documento fornecido por este farsante que o Clube Militar, representante legal das Forças Armadas, resolveu apostar todas as suas fichas...

A COMISSÃO DO CLUBE MILITAR

            O Clube Militar, presidido pelo próprio Hermes da Fonseca, embora tivesse tentado se fazer passar despretenciosamente pelo assunto, na verdade, foi um ferrenho articulador de boa parte da trama contra Arthur Bernardes. Na noite do dia 12 de novembro de 1921, ao término da sessão da Assembleia Geral Extraordinária do Clube Militar, a qual teve por destinação estudar um substitutivo para a Lei de Promoção, tendo surgido a discussão sobre se deviam ou não se pronunciar sobre o escândalo que tomava os jornais, duas moções foram propostas. A primeira do capitão Pedro Gomes que pedia para que deixassem a questão das cartas, pois se tratava de um assunto exclusivamente político e não militar, e outra, do tenente-coronel Fructuoso Mendes, que pedia que se formasse uma comissão para suprir de provas técnicas sobre o assunto. Postas em votação, aprovou-se, por esmagadora maioria, a formação da referida Comissão, cuja presidência foi dada ao Almirante Silvado.[32] A primeira sessão dessa comissão ocorreu já no dia 16 de novembro, no entanto, se perdeu em elocubrações sobre a amplitude de ação do Clube Militar, com diversos pareceres, até que na quarta sessão os oficiais resolveram acrescentar “emoção” aos seus trabalhos, iniciando uma sequência de desconfianças e possívieis ameaças. O Almirante Silvado informou que fora chamado ao telefone e ameaçado de morte caso declarasse que a carta era verdadeira. O Comandante Mello Pina logo se adiantou a contar que pessoa de sua família chamaram a atenção para um indivíduo preto que aparecia diante de sua casa toda vez que ele chegava. Para não ficar para trás, o General Gomes de Castro informou que, havia dias, dois homens pretos não abandonvam a porta de sua casa.[33]
            Arthur Bernardes nomeou, como seu representante junto ao Clube Militar, o General Barbosa Lima e como perito grafotécnico o Sr. Edgard Simões Corrêa.[34]
            Pouca coisa caminhara até a oitava sessão, quando foi informado que o representante de Edmundo Bittencourt, responsável pela publicação das cartas no Correio da Manhã, seria o General Ximeno Vileroy.[35] O marasmo e entraves sofreram um “susto” com a notícia de que Oldemar estava de volta da Europa. O Diário da Bahia anunciou no dia 29 de novembro que Oldemar Lacerda, pivô dos acontecimentos, havia desembarcado do navio Avon em Salvador no dia anterior.[36] Oldemar desembarcara em Salvador para evitar uma possível prisão no Rio de Janeiro, já que ainda tinha pendências judiciais relativas a seu último golpe. A possibilidade de prisão de Oldemar punha em risco o andamento das articulações para desmoralizar Arthur Bernardes, pois, caso fosse para a cadeia, havia uma real chance dele abrir o bico e confessar a fraude, desmoralizando mais ainda a classe armada. Se, antes, o adiamento de qualquer conclusão pela Comissão seria benéfico aos militares anti-bernardistas, pois manteria a dúvida sobre a dignidade de Arthur Bernardes até a eleição, então, passou a ser urgente uma conclusão desfavorável ao presidente de Minas Gerais.
            A sessão seguinte, realizada em dois de dezembro, declarou finalmente pronto o gabinete na sede do Clube Militar para que fossem realizadas as análises.[37] A partir daí, iniciaram-se as investigações, as quais deviam obedecer o seguinte critério de imparcialidade: o perito Serpa Pinto deveria fazer seus procedimentos por parte do Clube Militar, os quais seriam conferidos pelo perito Simões Corrêa, por parte de Arthur Bernardes; da mesma forma, o perito Simões Corrêa deveria fazer seus procedimentos, os quais seriam verificados por Serpa Pinto. Desta maneira dever-se-ia obter resultados isentos de parcialidade e em comum acordo entre as partes.[38]
            A primeira constatação feita por todos que viram as cartas, mesmo pelos jornais, era o fato de o nome Arthur aparecer com o “T” sem corte, coisa que não se verificava na assinatura do presidente de Minas Gerais. Na ânsia de fazer provas, Edmundo Bittencourt publicou em seu jornal um artigo no qual afirmava que possuía outro documento autêntico no qual Arthur Bernardes também havia assinado seu nome sem cortar o “T”.[39] De posse dessa informação o perito Simões Corrêa facilmente deduziu que este documento deveria ter servido de base para o decalque (cópia) e já arriscava que encontraria as mesmas coincidências apontadas nas cartas falsas. Por este motivo solicitou que o Correio da Manhã apresentasse o referido documento para análise, pois que dessa maneira determinaria a orígem da falsificação. Como era de se esperar, o General Vileroy, em resposta à Comissão, informou que o Sr. Edmundo Bittencourt não apresentaria o documento, pois comprometia a terceiros.[40]
            Os procedimento de verificação adotados por Simões Corrêa, que também deveriam ser acompanhados pelo perito da Comissão, Serpa Pinto, para serem refutados ou confirmados, acabaram por causar um grande desconforto aos que intencionavam provar que as cartas eram verdadeiras. Por este motivo a Comissão decidiu, arbitrariamente e por unanimidade, suspender as verificações do perito Simões Corrêa, limitando-o apenas a acompanhar os trabalhos de Serpa Pinto. Também no dia 17 decidiu-se determinar que fossem finalizados os trabalhos até o dia 20, mesmo sob protestos de Simões Corrêa que apontava a irresponsável prematuridade para a finalização dos trabalhos.[41]
            Diante de tantas afrontas à razão e a honra militar, o General Gomes de Castro apresentou ao Almirante Silvado sua carta de saída da Comissão, alegando para tal a “inesperada intimação” feita para o término dos trabalhos, bem como o “deplorável assentimento dos membros da Comissão”. Desta forma, recusava-se a participar de tão fraudulento movimento militar. Na mesma sessão onde foi lida a carta de Gomes de Castro, o perito Simões Corrêa declarou que “o perito da Comissão, só poderia chegar à conclusão de identidade graphica e authenticidade  entrando-se em absoluta privação dos sentidos” (louco!).[42] Por fim, a Comissão, a despeito de todas as evidências apontadas concluiu pela veracidade das cartas, atribuindo-as a Arthur Bernardes em seu relatório final datado do dia 27 de dezembro de 1921, assinado pelo perito Atônio Augusto de Serpa Pinto.[43]
            Das perícias realizada nas cartas pela Comissão foram publicados dois livros que permitem reconstituir todos os procedimentos adotados pelos dois peritos grafotecnicos escolhidos. Um relatando todas as atas de sessões e os procedimentos realizados sob a égide do perito da Comissão, Serpa Pinto, intitulado Documentos Históricos relativos a perícia legal da carta offensiva aos brios da classe armada, publicado pelo Clube Militar; outro publicado pelo perito contratado por Arthur Bernardes, Edgar Simões Corrêa, intitulado “As cartas falsas” attribuidas ao Snr. Dr. Arthur Bernardes e a prova da verdade, ambos publicados ainda em 1922. Com a análise técnica descortina-se uma terrível intencionalidade por parte do Clube Militar e conduzida por seu perito. Este procurou, com a aprovação da Comissão, excluir uma das cartas, concentrando a análise em um único documento. Nesse, descartou inicialmente todos os elementos constitutivos da escrita para se fixar apenas na assinatura. Esta manobra reduziu bastante o escopo de possibilidades desta ciência tão inexata e possibilitou gerar dúvidas quanto a autenticidade. Por outro lado, o perito Edgard Simões Corrêa, desde o início procurou produzir diversos mapas comparativos de todas as letras grafadas nas cartas e em outros documentos oficiais, o que levou a uma grande quantidade de indícios sobre a falsidade das cartas, bem como a indicação do método de falsificação.[44] Para a análise serviu-se de diversos documentos reconhecidamente autênticos de punho de Arthur Bernardes como elementos de comparação. Reproduções fotograficas ampliadas permitiram ver interrupções não usuais na escrita cursiva que denunciavam um processo de cópia. Da mesma forma, o perito Simões Corrêa observou que a escrita de Arthur Bernardes era bastante irregular, apresentando diversas forma de grafar várias letras, mas que, no entanto, fazendo uma comparação entre as duas cartas a ele atribuídas, percebia-se uma uniformidade da grafia das letras, além de não haver o traço de corte do “T” de Arthur em ambas as cartas, elementos que sugeriam fortemente a falsificação pelo processo de decalque, ou seja, cópia de cada caracter sobre um documento original, engessando o produto final num padrão que não correspondia a nenhum outro documento de orígem considerado autêntico por Arthur Bernardes.[45]
            Enquanto parte dos militares de alta patente se esforçava para dar ares de veracidade às cartas, outra se ultrajava com a aceitação de uma mentira. Foi o caso do General Gomes de Castro que no dia 24 de dezembro dirigiu uma conferência no teatro São Pedro cujo objetivo foi mostrar publicamente os diversos aspectos da falsidade das cartas, ou a “quintupla estúpida e immoral falsidade”: no papel, na caligrafia, no decalque (processo de cópia), no estilo e, finalmente, no recúo dos acusadores.[46] Tudo era acompanhado minuciosamente pelos jornais.

BATALHA JORNALISTICA

Paralelamente à batalha pseudo-judicial do Clube Militar, desenrolava-se uma intensa batalha jornalística com os diversos periódicos da capital polarizados entre a campanha de Nilo Peçanha e a de Arhur Bernardes. Além desses polos, ainda havia periódicos anti-nilistas e anti-bernardista que favoreciam uma possível substituição da candidatura de Arthur Bernardes por Hermes da Fonseca, era o caso do jornal O Combate, onde era redator um dos filhos do Marechal Hermes. O estopim da crise foi o Jornal Correio da Manhã que, não podendo recuar, disparou pesadamente contra os bernardistas, permitindo farpas também para os apoiadores de Hermes da Fonseca e levando a batalha até às vésperas do seu desfecho sangrento, quando apresentou entrevista do falsário Jacinto Guimarães, na qual falava de uma nova carta, do Sr. João Luis Alves a Fonseca Hermes, na qual havia uma proposta de compra das cartas de Arthur Bernardes.[47] Esta carta nunca foi mostrada, nem em fotografia, mesmo assim o General Ximeno Vileroy deu publicidade a um folheto escrito por ele e intitulado “Reação Republicana e as cartas”, no qual, dentre outras coisas apresentava o suposto texto dessa carta[48]. Em sua oposição direta estava a Gazeta de Notícias que desmontava a todo o momento as acusações do Correio da Manhã contra os bernardista e, por outro lado, apontando os nilistas como responsáveis de tais articulações criminosas. Todos os demais jornais do Rio de Janeiro e do Brasil se polarizaram em torno dos dois candidatos, Arthur Bernardes e Nilo Peçanha, numa campanha jornalística classificada como subversiva pelo Procurador Criminal da República[49], devido ao incitamento entre as facções e numa troca de insultos e acusações que marcaram um dos pontos mais baixos da política brasileira, herança terrível que, não raro, se pôde presenciar em campanhas recentes.
A campanha jornalística finalizou com a chegada das eleições, onde, vencidos pelo voto popular, a facção hermista deixou a politicagem de lado e partiu para o uso da força.

O USO DA FORÇA

            Públicas as maquinações, principalmente militares, contra Arthur Bernardes, o efeito parece ter sido contrário ao desejado e em primeiro de março de 1922, a Nação o elegeu Presidente, juntamente com seu vice Urbano Santos da Costa Araújo. Fato que, após contestações e investigações, concretizou-se com o reconhecimento pelo Congresso em 9 de junho. Inconformado com o resultado, o Marechal Hermes da Fonseca, presidente do Clube Militar, enviou um telegrama ao Comandante da Região Militar do Nordeste, em Pernambuco, excitando os oficiais a se rebelaram. Diante da indisciplina, Epitácio Pessoa não teve outra saída a não ser determinar, no dia 2 de julho, a prisão do Marechal e o fechamento do Clube Militar por seis meses.[50]
            O Exército encontrava-se dividido, parte pela legalidade e parte, liderada por Hermes da Fonseca, pela insubordinação e a recusa à futura posse do novo Presidente. Mal o Marechal Hermes fora posto em liberdade, 24 horas depois, estourou no Rio de Janeiro uma revolta militar que tinha os desígnios de revolução, a qual instauraria uma ditadura militar em substituição ao governo eleito, impondo uma junta militar governativa. Na madrugada de 4 para 5 de julho, por volta de uma hora da manhã, disparos vindos do Forte de Copacabana denunciavam a rebelião contra as autoridades constituídas. Até a tarde do dia 6 disparos de canhões contra o Quartel-General do Exército e a tropa reunida, na praça Serzedelo Corrêa e nas entradas dos túneis, mataram doze pessoas e feriram vinte e quatro, inclusive mulheres e crianças. Muitas residências particulares também foram atingidas pelos disparos dos canhões. Também na Vila Militar, parte da guarnição se rebelou, assim como, em Realengo, a Escola de Guerra, mobilizada, marchou em direção à cidade, chocando-se com forças legais e tendo baixas dos dois lados.[51]
            O procurador criminal da República, Carlos da Silva Costa, na denúncia crime apresentada em 27 de novembro de 1922 esclarece perfeitamente o nexo dos fatos:
A questão das cartas falsas, insistentemente explorada na imprensa reaccionaria, arrastou ao prelio as classes armadas e, durante largo tempo, os incidentes que se lhe seguiram trouxeram a alma publica numa crescente superexcitação. Os jornais da opposição, vendo que a repulsa das classes armadas á candidatura do Dr. Arthur Bernardes seria o meio mais seguro de leval-o á desistencia ou á renuncia, iniciaram então inconvenientissimo debate e franquearam suas columnas á collaboração dos militares mais exaltados. A attitude do Club Militar, sobretudo depois do exame das cartas, forçou o Governo a tomar excepcionais medidas de rigor que provocaram os mais acres commentarios dos jornaes opposicionistas, interessando vivamente a opinião publica. O incidente do telegramma á guarnição de Pernambuco e a subsequente prisão do Marechal Hermes precipitaram os acontecimentos, mais ou menos esperados no ambiente propricio que lhes criou a subversiva campanha da imprensa.[52]
            Paralelamente aos fatos do Forte de Copacabana, também tropas da guarnição de Mato Grosso se sublevaram, sendo deslocadas em direção a São Paulo e só parando após a notícia da derrota do movimento na Capital pelas forças legalistas.[53]
Diante da refrega, a maior parte do Exército permaneceu fiel à legalidade e ao Ministro da Guerra, Pandiá Calógeras. Os disparos de Copacabana ainda atingiram o Batalhão Naval, a Ilha das Cobras e o Arsenal de Marinha. Para evitar mais mortes, o governo tentou negociar um armistício que, negado, ensejou disparos da Fortaleza de Santa Cruz (do outro lado da entrada da baía da Guanabara) contra o forte rebelde. Após a derrota na Vila Militar, o Ministro Calógeras pessoalmente ligou para o forte para negociar a rendição com o Capitão Euclides Hermes e sua tropa. Este dispensou o efetivo que quisesse sair do forte, restando apenas alguns combatente. Ao sair para negociação, Euclides foi preso, assumindo o comando o tenente Siqueira Campos, que, negando-se a se render, cortou uma bandeira do Brasil em tiras e entregou aos últimos remanecentes do forte. O grupo saíu, em franca minoria, decidido a combater até a morte nas praias de Copacabana.[54]
            Esse desfecho violento da campanha presidencial, conhecido como “Os 18 do Forte”[55], romanticamente é ligado ao movimeno tenentista, mas que com este só guarda a participação de uma jovem oficialidade disposta a morrer por algum ideal (ainda difuso). Neste aspecto, o revolucionário tenentista Juares Távora, que viria a ocupar importantes posições políticas no Brasil pós-30, afirmou que este episódio não passou de uma “mera questão pessoal”, com intuito de derrubar o presidente eleito e “defender seus melindres, offendidos”[56], ou de Hermes da Fonseca, cuja imagem estava bastante desgastada com o processo eleitoral. De fato, o Marechal Hermes da Fonseca é citado no processo criminal como o chefe ostensivo da revolta, tendo se dirigido à Vila Militar para comandar a partir de lá, acompanhado por seu filho, o deputado federal capitão Mário Hermes da Fonseca[57]; enquanto o Forte de Copacabana se rebelava ao comando de outro filho, capitão Euclydes da Fonseca. Dentre os civis arrolados no processo estava Hermes Rodrigues da Fonseca Filho, mais um filho do Marechal. Também a tropa mobilizada de Mato Grosso era comandada por um parente, General Clodoaldo da Fonseca, primo do Marechal.[58] Logicamente o movimento não era só familiar, mas os muitos apoiadores, civis e militares, viam o Marechal como líder inconteste a ser seguido, numa atitude francamente personalista. O que a facção Hermista do Exército não conseguiu fazer com as fraudes das cartas e a ingerência do Clube Militar, pretendeu fazer com sangue!
            Também sobre o aspecto da luta contra um sistema oligárquico representado por Arthur Bernardes não convence, visto que o líder do movimento era Hermes da Fonseca que, como presidente de 1910 a 1914, fora a pura expressão da luta oligarquica pelo poder na Primeira República.
           
CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Os fatos que foram expostos neste artigo revelam uma história sórdida que marcou a campanha presidencial no ano do centenário da Independência Política do Brasil. Pode-se observar que a trama engendrada teve seu início nas ambições pessoais de um indivíduo de reputação bastante prejudicada por seus frequentes golpes que visavam lesar o patrimônio alheio. No entanto, os tentáculos do malcaratismo logo atingiram diversas pessoas, civis e militares, envolvidas ou não com a política nacional, os quais participaram ativa ou passivamente da trama, seja fornecendo documentos, criando documentos falsos ou, simplemente, omitindo o conhecimento do instrumento falso que seria utilizado para difamar Arthur Bernardes.
            As cartas, cuja existência já havia vazado meses antes e era objeto de comentários e maquinações, não precisavam de um exame pericial para se determinar sua falsidade, mesmo assim o Clube Militar, como representante das Forças Armadas procurou insistentemente defender a veracidade das mesmas, diante de uma audiência jornalística perplexa. Essa atitude, concluindo-se pela veracidade do que era sabidamente falso, acabou por reforçar o posicionamento dos eleitores daquele candidato a que se pretendia prejudicar, confimando-se, assim, a Presidência da República para Arthur Bernardes no pleito de 1922.
            Inconformado com o resultado das urnas, o Marechal Hermes da Fonseca protagonizou uma das piores demonstrações de derrespeito sobre a vontade do povo, intentando um golpe militar que deixou dezenas de mortos e feridos, além de produzir um racha no Exército, dividindo-o entre os defensores da manutenção do poder político pela classe armada e os legalistas que não concordavam com a interferência armada na política nacional. Esta divisão se perpetuou em diversos outros movimentos posteriores, permitindo a entrada de ideologias no seio das Forças Armadas e deixando marcas profundas nos movimentos das décadas de 1920 e 1930.
Além dos cadáveres humanos, essa mal orquestrada batalha eleitoreira resultou em alguns cadáveres morais, dentre os quais as próprias Forças Armadas (nesta época representada pelo Exército e a Marinha) cuja honra se tentou desnecessariamente  defender, já que as cartas eram realmente falsas, tomando-se atitudes insanas e desesperadas que acabaram por vitimá-las de fato. Revelou-se, ostensiva e arbitrariamente, a base apodrecida de uma aristocracia militar travestida em classe política. Ostensiva, pela descarada e parcial defesa da comissão do Clube Militar, disposta a usar meios ilegais e sórdidos, como a sonegação ou falsificação de documentos, cujo conteúdo atacava a honra de seus adversários; arbitrária pela atitude irresponsavelmente agressiva diante da derrota frente a vontade popular. Assim, o título que, inicialmente, anunciou a existência das cartas de Arthur Bernardes, Injurioso e ultrajante, na verdade, melhor serve para revelar o quanto a honra da classe militar fora ferida, não pelas palavras contidas nas cartas falsas, mas pela conduta de seus oficiais mais representativos, durante o processo de sucessão presidencial.


REFERÊNCIA

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TÁVORA, Juarez. À guisa de depoimento sobre a revolução brasileira de 1924. Rio de Janeiro: Mendonça, Machado & Cia., 1928, v. 3.
TERMINOU a prisão do comandante Alencastro Graça. Correio da Manhã, n. 8138, Rio de Janeiro, 14 jun 1921.
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ULTRAJE ao Exército. Correio da Manhã, n. 8255, Rio de Janeiro, 09 out. 1921.


*Coronel aviador (FAB) e Associado ao Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.
[1] PAULO Barreto.  Jornal do Brasil, n. 174, Rio de Janeiro, 25 jul. 1921, p. 5.
[2] PAULO Barreto.  Jornal do Brasil, n. 174, Rio de Janeiro, 25 jul. 1921, p. 5.
[3]Mário Rodrigues, equivocadamente, informa dez de outubro, em seu livro Meu Libello (Cf. RODRIGUES, Mário. Meu libello. Memórias do cárcere escritas em torno de duas revoluções (1ᵃ Parte). Rio de Janeiro: Editora Brasileira Lux, 1925, p.136.).
[4] RODRIGUES, Mário. Meu libello. Memórias do cárcere escritas em torno de duas revoluções (1ᵃ Parte). Rio de Janeiro: Editora Brasileira Lux, 1925, pp. 136-138.
[5] BITTENCOURT. Edmundo. Mais um documento authentico. Correio da Manhã, n.8296, Rio de Janeiro, 19 nov. 1921, p. 2.
[6] ULTRAJE ao Exército. Correio da Manhã, n. 8255, Rio de Janeiro, 09 out. 1921, p. 2.
[7] LIMA, Alberto de Souza. Arthur Bernardes perante a História. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1983, p. 30.
[8] CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. 23ᵃ reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 49-50.
[9] MAGALHÃES, Bruno de Almeida. Arthur Bernardes. Estadista da República. Coleção Documentos Brasileiros 159. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora, 1973. p. 90.
[10] PERSEGUIÇÃO aos militares, Correio da Manhã, n. 8138, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 14 jun. 1921, p. 4; GRANDE movimento no Exército. Correio da Manhã, n. 8155, Rio de Janeiro, 1 jul 1921, p. 4.
[11] TERMINOU a prisão do comandante Alencastro Graça. Correio da Manhã, n. 8138, Rio de Janeiro, 14 jun 1921, p. 3; PRISÃO do comandante Alencastro Graça e um projeto do deputado Mario Hermes, A. Correio da Manhã, n. 8155, Rio de Janeiro, 1 jul 1921, p. 4.
[12] ALMANAK LAEMMERT.  67° Anno. Annuário Administrativo, agrícola, Profissional, Mercantil e Industrial do Districto Federal para 1910.  Rio de Janeiro: Officina Typográphica Almanak Laemmert, 1910, p. 2129.
[13] DIÁRIO OFFICIAL. Rio de Janeiro: Imprensa Official, 14 nov. 1912, p. 14.
[14] MAGALHÃES, Bruno de Almeida. Arthur Bernardes. Estadista da República. Coleção Documentos Brasileiros 159. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora, 1973, p. 95.
[15] BAPTISADOS. Gazeta de Notícias, n. 189, Rio de Janeiro,  07 jul. 1912, p. 8.
[16] NO CLUB Militar. A Posse do Marechal Hermes da Fonseca. Fon-Fon, n. 27, Rio de Janeiro, 2 jul. 1921, p. 18 e ACONTECIMENTO da semana. Revista da Semana, ano 22, n. 27, Rio de Janeiro, 2 jul. 1921, p. 14.
[17] HOMEM do dia, O. Gazeta de Notícias, n. 323, Rio de Janeiro, 10 dez. 1921, p. 1; CHANTAGISTA Oldemar de Lacerda, O. Gazeta de Notícias, n. 327, Rio de Janeiro, 15 dez. 1921, p. 1.
[18] MAGALHÃES, op. Cit., p. 95.
[19] TURF, diversas. Gazeta de Notícias, n. 107,  Rio de Janeiro, 18 abr. 1919, p. 19.
[20] PELOS Clubes. Gazeta de Notícias, n. 174, Rio de Janeiro, 24 jun. 1914, p.6.
[21] ESCÂNDALO na Aduana. Gazeta de Notícias, n. 204, Rio de Janeiro, 2 jul. 1915a, p. 5; ESCÂNDALO na Aduana. Gazeta de Notícias, n. 209, Rio de Janeiro, 8 jul. 1915b, p. 9; CONTRABANDO de Gonçalves Campos & Cia, O. Gazeta de Notícias, n. 310, Rio de Janeiro, 6 nov. 1915, p. 4.
[22] EMPREGADO “águia”, Um. Gazeta de Notícias, n. 105, Rio de Janeiro, 16 mar. 1919, p.5; VELHACARIAS do advogado Pinto Lima, As. Gazeta de Notícias, n. 119, Rio de Janeiro, 1 mai. 1919, p. 7; CASO Pinto Lima & C., O. Gazeta de Notícias, n. 125, Rio de Janeiro, 8 mai. 1919, p. 6; OLDEMAR Lacerda obteve “habeas corpus”. Gazeta de Notícias, n. 198, Rio de Janeiro, 20 jul. 1919, p. 4; AINDA o caso Pinto Lima & C. Gazeta de Notícias, n. 279, Rio de Janeiro, 9 out. 1919a, p. 4; AINDA o caso Pinto Lima & C. Gazeta de Notícias, n. 282, Rio de Janeiro, 12 out. 1919b, p.5; e CASO Oldemar Lacerda versus Pinto Lima & C., O. Gazeta de Notícias, n. 029, Rio de Janeiro, 29 jan. 1920, p.2.
[23] MAGALHÃES, Bruno de Almeida. Arthur Bernardes. Estadista da República. Coleção Documentos Brasileiros 159. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora, 1973, p. 96.
[24] Ibidem, p. 96-97.
[25] BITTENCOURT. Edmundo. Mais um documento authentico. Correio da Manhã, n.8296, Rio de Janeiro, 19 nov. 1921, p. 2.
[26] CORRÊA, Edgard Simões. “As cartas falsas” attribuidas ao Srn. Dr. Arthur Bernardes e a  prova da verdade. Rio de Janeiro, 1922, p. 65.
[27] Ibidem, p. 65.
[28] SERPA Pinto é uma fera!, O. Gazeta de Notícias, n. 335, Rio de Janeiro, 24 dez. 1921, p. 1.
[29] CORRÊA, Edgard Simões. “As cartas falsas” attribuidas ao Srn. Dr. Arthur Bernardes e a  prova da verdade. Rio de Janeiro, 1922, p. 65.
[30] MAGALHÃES, Bruno de Almeida. Arthur Bernardes. Estadista da República. Coleção Documentos Brasileiros 159. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora, 1973, pp. 100-101.
[31] CORRÊA, op. cit., pp. 66-67.
[32] CLUBE MILITAR. Documentos históricos relativos à perícia legal da carta offensiva aos brios das classes armadas. Rio de Janeiro: Editora Leite Ribeiro, 1922, p. 9.
[33] Ibidem, p. 17.
[34] MAGALHÃES, Bruno de Almeida. Arthur Bernardes. Estadista da República. Coleção Documentos Brasileiros 159. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora, 1973, p. 120.
[35] CLUBE MILITAR. Documentos históricos relativos à perícia legal da carta offensiva aos brios das classes armadas. Rio de Janeiro: Editora Leite Ribeiro, 1922, p. 27.
[36] MAGALHÃES, Bruno de Almeida. Arthur Bernardes. Estadista da República. Coleção Documentos Brasileiros 159. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora, 1973, p. 124.
[37] CLUBE MILITAR, op. Cit., p. 28.
[38] Ibidem, p. 11.
[39] MAIS um documento authentico. Correio da Manhã, n.8296 , Rio de Janeiro, 19 nov. 1921, p. 2.
[40] CLUBE MILITAR. Documentos históricos relativos à perícia legal da carta offensiva aos brios das classes armadas. Rio de Janeiro: Editora Leite Ribeiro, 1922, pp. 35-38.
[41] Ibidem, pp. 43-44.
[42] Ibidem, pp. 45-46.
[43] Ibidem, p. 76.
[44] CLUBE MILITAR. Documentos históricos relativos à perícia legal da carta offensiva aos brios das classes armadas. Rio de Janeiro: Editora Leite Ribeiro, 1922; CORRÊA, Edgard Simões. “As cartas falsas” attribuidas ao Srn. Dr. Arthur Bernardes e a  prova da verdade. Rio de Janeiro, 1922.
[45] CORRÊA, Op. Cit.
[46] CONTRA a infâmia da carta falsa. Gazeta de Notícias, n. 335, Rio de Janeiro, 24 dez. 1921, p. 1.
[47] CARTA infamante que o Sr. Arthur Bernardes escreveu contra as classes armadas, A. Correio da Manhã, n.8514, Rio de Janeiro, 27 jun. 1922, p. 1.
[48] MAGALHÃES, Bruno de Almeida. Arthur Bernardes. Estadista da República. Coleção Documentos Brasileiros 159. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio Editora, 1973, p. 131.
[49] BRASIL, Justiça Federal. Os acontecimentos de 5 e 6 de julho; denúncia do Procurador Criminal da República (27 de novembro de 1922 e 26 de janeiro de 1923). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923, p. 3.
[50] LIMA, Alberto de Souza. Arthur Bernardes perante a História. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1983, p. 35.
[51] BRASIL, Justiça Federal. Os acontecimentos de 5 e 6 de julho; denúncia do Procurador Criminal da República (27 de novembro de 1922 e 26 de janeiro de 1923). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923, p. 3.
[52] Ibidem, p. 6.
[53] Ibidem, p. 4.
[54] DRUMMOND, Cosme Degenar. O Brigadeiro Eduardo Gomes, trajetória de um herói. São Paulo: Editora Cultura, 2011, p. 51.
[55] Segundo a denúncia do Procurador Criminal, eram 28 homens: “O Tenente Siqueira Campos reuniu então os seus companheiros, num total de 28 homens, partiu em 28 pedaços uma bandeira brasileira, entregando um a cada combatente, e com elles abandonou o Forte, vindo a assaltar as forças legaes na praia.” BRASIL, Justiça Federal. Os acontecimentos de 5 e 6 de julho; denúncia do Procurador Criminal da República (27 de novembro de 1922 e 26 de janeiro de 1923). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923, p. 19.
[56] TÁVORA, Juarez. À guisa de depoimento sobre a revolução brasileira de 1924. Rio de Janeiro: Mendonça, Machado & Cia., 1928, v. 3, pp. 144-145.
[57] BRASIL, Justiça Federal. Os acontecimentos de 5 e 6 de julho; denúncia do Procurador Criminal da República (27 de novembro de 1922 e 26 de janeiro de 1923). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923, p. 10.
[58] Ibidem, p. 4.

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