domingo, 1 de novembro de 2009

A CABANAGEM (PARTE I)



            Na década de trinta do século XIX, diversas revoltas contra a Regência instaurada no Brasil foram registradas, dentre elas a Balaiada no Maranhão, a Sabinada na Bahia, a Farroupilha no Rio Grade do Sul e a Cabanagem no Pará. Esta, última em especial, tomou corpo de revolução e marcou profundamente a História do Brasil no que diz respeito a luta pela cidadania.

Analisar e comentar a Revolução ocorrida na província do Gão-Pará em 1835, demanda uma compreensão do panorama geopolítico daquela província, bem como um mínimo de compreensão do imaginário daquele povo. Por isso vejamos alguns antecedentes.
A América rapidamente incorporou as idéias e ideais Iluministas da Europa desencadeando um rápido processo de libertação em prol do esclarecimento, liderado e motivado pela Independência dos Estados Unidos da América em 1776.
O mundo assistiu atônito aos resultados da Revolução Francesa e assimilava avidamente os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A província do Pará, como as demais províncias brasileiras, também não era imune a tais ideais. Devido à proximidade territorial com a Guiana Francesa, a voz de Montesquieu ecoava nos mais distantes redutos da Amazônia. Movimentos insurgentes, levantes de escravos e motins na colônia vizinha influenciavam o modo de pensar e agir dos brancos, caboclos, negros libertos, escravos e índios no Pará. Não se pode esquecer que, com a vinda da Família Real para o Brasil, D. João, em represália a atitude francesa de invadir Portugal, ordenou a invasão e ocupação da Guiana Francesa e foram os soldados paraenses que lá ocuparam essa colônia de 1809 até 1817, tendo um contato muito próximo com tais ideais importados da França. É notório, também, que o respeito desses brasileiros pelo povo da Guiana e por suas leis vigentes redundou numa grande simpatia manifestada, calorosamente por ocasião da despedida das tropas para o retorno ao Brasil, fato que nos permite admitir um contato ainda mais prolongado, mesmo após a desocupação da Guiana.
            Outro episódio que demonstra o grau de influência das idéias liberais no povo paraense é a Revolução Constitucional do Porto. O sucesso desta revolução, que culminou com o retorno de D. João VI para Portugal, foi a adesão de Lisboa e de três províncias brasileiras, sendo que além do Rio de Janeiro e Bahia, o Pará foi a primeira província a declarar, em 1° de janeiro de 1821, adesão à Revolução do Porto. Este movimento foi encabeçado pelo jovem Filipe Patroni que, em poucos dias, disseminou as idéias liberais e democráticas da nova Constituição portuguesa, tanto no meio dirigente quanto no âmbito popular e militar. Na assembléia provincial, assumiu a direção do movimento o coronel Francisco José Rodrigues Barata. O resultado para a província foi a formação do primeiro governo constitucional aclamado pelo povo. Tal fato encheu o paraense, brasileiro-nato, de esperança e motivação na participação dos governos da província.
            No entanto, o apoio à Lisboa Constitucional não foi retribuído na mesma medida à província do Grão-Pará, pelo contrário, a adesão da Corte do Rio de Janeiro apenas reforçou o tratamento dado a esta província, como objeto de exploração portuguesa.
            Desta forma, o processo de independência política do nascente Império Brasileiro, foi visto com desconfiança pelo povo paraense, o qual vislumbrava apenas uma mudança de direitos exploratórios de Lisboa para o Rio de Janeiro.
            Repletos de ideais liberais, esta população viu-se diante de uma proclamação de independência ambígua, que mantinha uma Corte “portuguesa” no Rio de Janeiro, privilegiando os antigos colonizadores e negando o direito de cidadania às populações pobres em todas as províncias do país. O processo de aceitação da independência do Brasil no Pará deu-se de forma lenta e não sem lutas e graves repressões. Vindo esta província a aderir à independência do Brasil apenas a 15 de agosto de 1823, após a chegada de uma esquadra enviada do Maranhão pelo Almirante Cochrane, mercenário inglês contratado por D. Pedro I, e comandada pelo, também inglês, capitão-tenente John Pascoe Greenfell.
            O processo de Independência trouxe muitas promessas e poucas mudanças. Diante de tais circunstâncias as manifestações populares de desagrado à Corte e, principalmente, ao Governo Provincial (neste momento uma Junta de Governo Provisória) foram se agravando.
            Em outubro de 1823, um episódio que poderia ter sido considerado isolado não fosse a crueldade empregada na repressão, marcaria profundamente as famílias paraenses e estaria sempre presente no imaginário cabano, a “Hecatombe do brigue Palhaço”: as dez horas da noite do dia 15 de outubro estourou um levante da tropa, apoiado pelo povo, que exigia a demissão do presidente da Junta e de funcionários portugueses que eram contra a Independência. O motim foi aplacado com a promessa de cumprir-se as exigências. Concomitante foi solicitado o apoio do comandante da fração da esquadra Imperial, aportada em Belém, capitão-tenente John Pascoe Greenfell, a fim de manter-se a ordem na capital. Distúrbios e atos de vandalismo no dia seguinte fizeram com que Greenfell ordenasse o desembarque em Belém, realizando-se diversas prisões principalmente entre os brasileiros natos. Muitos foram levados para a cadeia municipal no dia 19, porém a Junta solicitou a transferência de parte para uma das naus, pois teriam melhores condições de controle. Assim, na noite de 20 de outubro muitos presos foram transferidos para o brigue “Deligente", posteriormente rebatizado de “Palhaço". Nos porões causticantes do brigue Palhaço, cerca de 260 paraenses se amontoavam e lutavam pela sobrevivência, fustigados pela cede e infernal calor. No dia 21, a fim de silenciar as ofensas esbravejadas por estes infelizes, foi dada a ordem de jogar-se cal virgem sobre os mesmos e que se fechassem os alçapões de ventilação. Na manhã do dia seguinte, haviam 256 mortos e quatro sobreviventes, dos quais três morreriam horas depois e um que viveria alguns poucos anos, com saúde destroçada, para contar a agonia destes homens em busca de uma morte menos dolorosa, fugindo da asfixia e das severas queimaduras da cal, jogavam-se de encontro as paredes e chão com intuito de se mutilarem mortalmente, encurtando suas agonias. . .
            Em 7 de agosto de 1831, um motim político, um golpe anti-liberal, derrubou o presidente da província, Bernardo José da Gama, Visconde de Goiana, e levou ao poder Marcellino José Cardoso (caramuru convicto e segundo deputado mais votado), reinflamando os ânimos nativistas na província.
Embora o motim de 1831 tenha sido um duro golpe nos ideais liberais da província, este abriu caminho para os próprios liberais, mostrando que o presidente enviado pela Corte não era intocável e a reação desta era fraca e lenta.
Ao motim de agosto de 1831 se sucedeu o levante de 16 de abril de 1833 e, finalmente, em sentido inverso (movimento liberal nativista) um novo levante tomou corpo de revolução em janeiro de 1835, começava a Cabanagem. Certamente o mundo poucas vezes viu uma revolução genuinamente popular de tamanho vulto, talvez apenas superada em magnitude pela revolução popular mexicana. A Cabanagem representou o primeiro momento em que caboclos, negros, escravos e índios experimentaram o gosto da igualdade e liberdade, exercendo o direito de cidadania à força.
O principal expoente intelectual na luta liberal pela igualdade e liberdade na província do Pará era, desde a década de 20, o cônego João Batista Gonçalves Campos, o qual, por possuir uma língua ferina ao denunciar a tirania “portuguesa” na província, foi preso e espancado diversas vezes. Na redação do jornal “O Paraense”, de propriedade de Filipe Patroni, e, ainda, a frente de seu partido político, não dava trégua aos dirigentes portugueses no Pará, com isso sofria severa perseguição. No dia 31 de dezembro de 1834, o cônego Batista Campos veio a falecer, irrompendo, assim, a ira da população, principalmente negros, índios e caboclos, que agora se viam politicamente órfãos.
            Na manhã de 7 de janeiro de 1835, as populações pobres de Belém e dos interiores próximos (em sua maioria brasileiros natos) estavam incontroláveis. O presidente da província, Bernardo Lobo de Souza, foi executado à porta do Palácio do Governo. Em sua substituição, o tenente-coronel Félix Antônio Clemente Malcher foi aclamado pelo povo como sucessor na presidência da província, sendo o primeiro presidente cabano. Começava oficialmente a Cabanagem.
            Malcher era um latifundiário e enriquecera às custas das leis da Corte. Um de seus primeiros atos foi tentar pacificar a província, procurando desarmar os revoltosos cabanos e pagar as tropas que já começavam a se amotinar por falta de soldo. O novo presidente mandou que se pagasse a tropa com cobre. No entanto, foi informado que nos cofres públicos não havia moedas desta espécie. Por isso mandou que se fizesse o levantamento do cobre recolhido (pela lei nº 52) e que ainda não tinha sido remetido à Corte. De posse deste levantamento, ordenou que se pagasse a tropa com estas moedas, as quais depois de punçadas na tesouraria com uma contra-marca, voltariam a circulação com valor de um quarto do nominal.

            Diante do governo da província, Malcher se deparou com reação dos revoltosos que exigiam mudanças e benefícios rápidos. O novo presidente não conseguia esvaziar a capital dos caboclos, negros e índios trazidos com a revolução. Para tal empregava as forças legais, as quais o viam também com estranheza.
            Malcher procurou se aproximar da autoridade naval do Império, primeiro-tenente Wandenkolk, comandante do porto. Este, demonstrou muita habilidade em influenciar Malcher contra as demais lideranças cabanas, conseguindo certo êxito em dividir as forças revolucionárias com o intuito de aniquilá-las posteriormente. Na direção do movimento, as outras figuras relevantes o desaprovavam abertamente. Notadamente os irmãos Vinagre (Antônio e Francisco) e o cearense Eduardo Angelim. O embate do presidente Malcher com Francisco Vinagre, Comandante das Armas, se tornou público, culminando com a demissão do segundo. No entanto, como contava com grande apoio popular e fora aclamado Comandante das Armas pelo povo e não designado pelo presidente, permaneceu na sua posição após afrontar pessoalmente, e em público, o primeiro presidente cabano.

Primeiro-tenente Eduardo Wandenckolk
            As forças cabanas passaram a se aglutinar parte a volta de Malcher e parte a volta de Francisco Vinagre. No dia 19 de fevereiro foi emitida e cumprida a ordem de prisão de Eduardo Angelim, um dos grandes expoentes na tomada da capital. Em seguida a ordem para a prisão de Francisco Vinagre, desencadeou um ataque preventivo contra as foças de Malcher. Estava iniciado o combate fratricida entre os cabanos. Malcher decidiu transferir sua guarda para o Forte do Castelo, pois aí era um ponto estratégico para a manutenção do poder na cidade. Isolado no forte, com seus homens sob fogo cerrado preferiu transferir-se para a nau capitânia da esquadra. De lá comandou o bombardeio de Belém, tendo como alvos as concentrações cabanas de Vinagre.
            Enquanto as tropas de Malcher minguavam com as deserções, as de Vinagre se engrossavam e consolidavam suas posições a despeito do bombardeio da cidade pelos canhões da esquadra.
            No dia 21 de fevereiro o Conselho da Armada entrou em negociação com o já consagrado novo governo da província, a fim de se firmar uma paz. O Resultado foi a prisão do primeiro presidente cabano pelo próprio Wandenkolk que, em seguida, seria entregue ao novo governo. Durante o translado de Malcher, numa canoa, para a cidade este foi assassinado por um cabano que realizava sua vingança pessoal.
Assumiu Francisco Vinagre, como o segundo presidente cabano. No dia dois de março Francisco Vinagre prestou juramento na Câmara Municipal, comprometendo-se a defender o Império e a província, garantindo as liberdades constitucionais, a lei e a ordem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário